quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sentidos

Ela revirava as gavetas buscando alguma coisa que ele tivesse escrito, mas sabia muito bem que ele detestava escrever, ainda mais para falar de coisas nada práticas como o amor. Mesmo assim, ela revirava a gaveta com muita pressa, mas só achava remédios vencidos. Ele era um homem muito prático. Ele tinha muito que fazer e ela na maioria das vezes não tinha tanta coisa pra fazer. Só cuidar da casa, das crianças, ir ao supermercado, abastecer a geladeira. Era muito importante abastecer a geladeira. Era também muito importante encher a cesta da cozinha de frutas variadas, pois ele gostava de chegar e ver que as frutas estavam lá, à mão. Nem sempre ele comia fruta, mas gostava de vê-las ali. E ele achava que se as crianças vissem as frutas, iriam desejar comê-las. Porém, apesar dos esforços, toda sexta feira – que era o dia de arrumar a geladeira e a cesta de frutas – muitas delas iam para o lixo. Mas não tinha problema. Porque sempre ela poderia descer a rua e passar na frutaria. Depois da floricultura era o lugar que ela mais gostava de ir. Que perfume delicioso! Às vezes, nos dias de sol quente, se podia sentir o perfume das frutas apenas passando na rua. Ela passava devagar com o carro, só para respirar o perfume das frutas misturadas. Um dia, por acaso, no shopping, achou um perfume desses fresquinhos. O vidro era bonito,simples. O aroma era alguma coisa parecida com manga, laranja, jasmim e rosas brancas. Ela lembrava bem porque ficou segurando o vidro enquanto a vendedora da loja de perfumes insistia em mostrar outros perfumes mais sofisticados, lançamentos. Ela sorriu e pediu para a vendedora fazer o favor de buscar-lhe um copo de água. Só para a moça se afastar um pouco e deixar que ela, quieta, pudesse lembrar porque aquele cheiro lhe parecia ser o da felicidade. O que aconteceu, em que dia, de onde surgiu aquele cheiro? E a sensação de felicidade que ele enlaçava? Ela não sabia dizer. Mas comprou o perfume mesmo assim. Vinha pensando, enquanto dirigia de volta para casa, nas coisas sem sentido que lhe faziam tanto bem. Apesar de que agora tudo precisava ser racional. Mas o racional era tão sem graça. O racional era inodoro. Racional era encontrar a gaveta cheia de remédios vencidos e nenhum bilhete com a letra dele. Claro, nunca mais ninguém mexeu naquela gaveta! Isso era função dele, cuidar dos remédios. A função dela era procurar bilhetes e laços de fita que combinassem com o pacote. A função dela era achar papéis e lápis coloridos para as crianças. Era colocar flores para o vaso de cristal da sala. A função dela era esperar por ele. Ela deixava a casa aberta apesar dele sempre achar isso muito ruim por causa da segurança. Mas ela gostava da fresca da tarde entrando pelas grandes janelas da sala, enquanto ela arrumava as flores no vaso. E ele sempre chegava, às vezes tarde, às vezes muito tarde. Mas chegava. Chegava e a primeira coisa que fazia era sorrir mostrando que estava feliz por ter chegado. E assim foram passando os dias, os anos, com tantas flores e cestas de frutas chegando. Tantos papéis, laços de fita e surpresas boas. Tanta espera, tantos beijos. Tantas partidas e chegadas, soluços, viroses e rinites. Tantas coisas acontecendo que não se podia saber onde ia dar tudo aquilo. Ela pensava que ia ser sempre assim. Essa certeza era a coisa mais estável que ela conhecia. Mas depois a vida mudou abruptamente. Sorte que as crianças já haviam crescido. Crescidas, podiam guardar para si o choro da tristeza de não ter mais o pai por perto. Ele não escreveu bilhete algum. “Que droga de preguiça de escrever”, ela pensava, com raiva. Como se isso fosse algo mesquinho, uma falha imperdoável. Imperdoável, partir de forma tão brusca. E foi em um domingo, dia em que não se trabalha. Assim, ele não incomodou ninguém. Partiu silenciosamente, respeitosamente. Sem queixas, nem gemidos, sem pedir nada. Ela não sabia o que pensar, nem naquele triste dia, nem agora. Uma mistura de todos esses ares, de tudo o que viveram, enchia seu coração como uma grande calmaria depois da tempestade. Então ela parou de procurar bilhetes, parou de sentir raiva de não achar nada. Sentou-se e sossegou. Algumas lágrimas lhe escaparam mas foi só isso. Ela já tinha chorado tanto. A cama cheia de coisas parecia muito maior agora. Resignada, arrumou o quarto. Recolheu todos os remédios vencidos e os jogou no lixo. Esticou-se para trás e abraçou a si mesma. Tudo estava bem e em ordem. Mesmo triste e sozinha, ela se sentiu bem. Talvez por causa do perfume sem sentido que estava em toda parte. Talvez por concluir que melhores coisas da vida, assim como as piores, não tem sentido algum.

Mágica para um menino

Morceguinho, morceguinho,

Pendurado, tão quietinho

De ponta cabeça, tristinho

Largue disso bem depressa,

E da preguiça se esqueça.

Olhe o sol, veja as flores

Desvire, descubra, decole!

Desvirado, não enrole

Voe pra cima, bonito

Para o céu azul pertinho,

E o calor do sol te aqueça

Voe bem alto e cante

Brinque nas nuvens, nas cores

E quem te olha se encante

Faça novas peripécias

E voando, se transforme

Em menino passarinho!