segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Brevidades

Meus pais trabalhavam muito. Trabalhavam o dia inteiro. Eu e meu irmão ficávamos entregues à casa, nunca submissos à empregada. Ela era nossa declarada inimiga. E nós, seus espiões. Ela que não se atrevesse a levar nada da despensa sem falar com a mamãe. Se fizesse isso, estaria perdida nas nossas mãos.
Havia uma em especial que passei a odiar. Ela se chamava Isaura. Usava dentadura, mas só na parte de cima. A dentadura se deslocava quando ela falava. E quando parava de falar, ela ia mastigando algo imaginário na boca, no esforço de manter a dentadura no lugar. Era uma coisa tenebrosa.
Um dia, meu irmão mais novo (a caçula que me desculpe, mas nessa época só havia ele mesmo) me chamou e contou que a empregada havia segurado ele pelo braço e chacoalhado. Eu respirei fundo - como a mamãe havia me ensinado, sem querer, pois ela fazia isso quando tinha um problema para resolver - e pedi que ele me contasse toda a história, com detalhes. Eu ia fazendo perguntas pelo meio da narrativa. "Ela pegou no braço? Chacoalhou? Como? Faça em mim igual ela fez...' E ele então se empenhou para me mostrar, agarrando meu braço com toda a sua força de 4 anos... Me deu vontade de chorar. Engoli, respirei e perguntei: "Juni, por que ela fez isso? Você foi malcriado?" Ele disse: "não, eu só queria por a sandália sozinho...'
Quando tinha 2 anos, meu irmão teve um problema no osso do quadril e teve que usar um aparelho na perna por um ano. Não podia andar sem ele, ordens do médico. Minha mãe, com toda a paciência, explicou para ele essa proibição, mas ele era tão pequeno... Não sei se entendia tudo o que ela falava. Enfim, ele era muito inteligente e logo aprendeu a se locomover sem o aparelho. Tinha um tapete no nosso quarto, um pequeno, desses que ladeiam a cama. Ele escorregava da cama para o tapete e ia apoiando as mãozinhas no chão, empurrando o corpo para frente. Assim ele andava a casa toda.
Minha mãe o ensinou a fazer tudo sozinho. Ele queria fazer tudo sozinho, e minha mãe falava que era importante para ele aprender a se desenvolver, apesar de estar limitado temporariamente nos seus movimentos. Ele não podia jogar bola ou correr. Ele era muito ativo, então aquelas mãozinhas trabalhavam muito, montava e desmontava os brinquedos, aprendia sozinho como as coisas funcionavam. Então, depois da retirada do aparelho, ele já sabia fazer muita coisa, e queria sempre aprender algo novo, e continuava a fazer tudo o que podia sozinho. Então, porque ele não quis deixar aquela jararaca por a sandália nele, ela lhe intimidou com um cachoalhão. Acalmei meu irmãozinho, seus olhos grandes e negros já estavam serenos e ele olhava para mim com a certeza de que eu iria lhe fazer justiça. Disse a ele 'fique aqui no quarto, eu já venho'. Agora (respirei fundo mais uma vez) O QUE FAZER COM ESSA BRUXA DA DENTADURA? Pensei um pouco enquanto atravessava o corredor do apartamento arrumado com capricho. Não precisei pensar muito. Já nessa época descobri que as idéias me brotavam da testa em profusão. Cheguei na cozinha, a víbora desdentada estava lavando louça. Passei silenciosamente por trás dela, fui até a lavanderia. Peguei uma vassoura. Virei a vassoura ao contrário. Voltei à cozinha, por trás da empregada, mirei na pilha de louça que estava a sua esquerda, e desferi um golpe com toda a minha raiva e força de 9 anos, sobre a louça ainda molhada. Os cacos subiram no alto, fizeram uma pirueta e caíram, se multiplicando em outros menores. Ela, pálida, virou-se para ver quem tinha feito aquilo. E me viu. E não creu que era eu, mas teve que crer. E assim permaneceu, estupefata e muda, enquanto eu lhe pronunciava um veredito: 'Chegue perto do meu irmão de novo e a vassoura vai descer na sua cabeça'.
Claro, a noite a mamãe chegou e ela correu, ainda apavorada, contar a história do jeito dela. Minha mãe (devia ser advogada) nos colocou frente a frente e me fez contar a minha versão. Após saber do motivo, me repreendeu, e mandou a desdentada embora. Ficamos livres por um tempo, até que veio outra, mas essa era boazinha. Ou se fez de boazinha, talvez, por ter descoberto o episódio da vassoura.
Mas nem todos os dias tinha dramalhão. A maioria dos dias era uma calmaria. De vez em quando, nós íamos para a cozinha fazer brevidades, o Junior untava as forminhas e eu fazia a massa. 590 forminhas... e ríamos, era o supra sumo da alegria, fazer e depois comer aquelas brevidades. Guardávamos uma travessa com algumas delas, arrumadas em pilhas para a mamãe. Foi uma época tão gostosa, eu nem imaginava a 'brevidade' da infância. Hoje, quando sinto um cheiro de bolo ou pego o pacote de Maizena, eu me lembro de tudo isso. Às vezes, me dá uma vontade de chorar sobre o cadáver etéreo da minha infância perdida. Irrecuperável. Só que a tristeza passa, porque me lembro que logo vem o dia da semana (a quinta-feira) que meu irmão virá  me buscar para irmos juntos ao ensaio do coro. Ele vai tocar irritante e repetidamente a campainha, mesmo sabendo que eu já ouvi. Daí, eu vou, bufando, abrir a porta, fuzilando de raiva. Então, aqueles olhos grandes e negros vão me mirar e ele vai sorrir com todos os dentes. E eu vou me alegrar em ver que ele está na minha vida, sempre dando um jeito de fazer alguma travessura, através aquele menininho pequeno que existe dentro dele e que se recusa a crescer.