terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ai, Dotorrr!

(Este poema caipirinha eu fiz para o meu doutor)


"Dotorrr, dotorrr...to cum dorrr!!"


O pobre doutor passa os dias

e noites ouvindo ais!

Mas hoje, nada de urgente.

Seja, sim, bom paciente:

Ligue e diga "feliz aniversário"

e deixe o doutor contente!

Não se importe com presente...

Ah, dr. Marcos, que cuida tão bem da gente!

Seja forte e tranquilo,

muito, muito inteligente,

sábio e demais prudente!

Que a paciência nunca acabe,

pra cuidar de tanto paciente!

Faça a dor diminuir e o amor vá espalhando

E com suas brincadeiras, já vá o doente tratando!

Deus sabe que tempo quente

não tem, pra esse doutor valente!

Parabéns, dr.Marcos!

Mas que belo coração...

Sempre a todos atendendo, enchendo a recepção!

Saiba que Deus está vendo

e gostando do seu jeitão.

Dele virá recompensa na hora da precisão.

Este, sim, é o maior presente!

Parabéns, dr. Marcos!

"Vamo" em frente, que atrás vem gente!!!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Baile (ou Uma Cinderela na versão do caos)

 Embora fossem dias de festa, os olhos das pessoas diziam outras coisas. No lufa-lufa das compras de natal, as ruas apinhadas de gente, as calçadas entupidas de camelôs e sorveteiros e toda a sorte de gente esquisita, os sons de odiosas músicas de pagode e axé, vindos de diversas lojas, o comércio enlouquecido competia entre si pra ver quem conseguia atrair mais cliente. Que idéia estúpida. Só faziam afugentar, pelo menos, os desesperados por descanso e quietude, como ela. Sentou-se, exausta, no sofá da sala do pai, no apertado apartamento que agora era só dele, examinando o que mais naquele ano estava irremediavelmente diferente de quando mamãe partiu. Menos enfeites. Nenhuma flor em vaso algum. Não havia cheiro de comida, embora houvesse comida pra comer, comida própria para a ocasião - outra coisa estúpida do natal - mas tudo feito fora, então a casa não cheirava a comida boa, aquele perfume de ingredientes que dançava no ar quando a mãe estava ali, arrumando as coisas do natal. A mágica da comida. A ciranda dos ingredientes para formar o cardápio, escolhido minuciosamente para causar o efeito desejado, de acordo com o tema. Mamãe e sua arte dramática: a culinária. Foi uma época luminosa da vida. Mas acabou-se. Restava o cheiro insuportável de cigarro do pai – último dos vícios - e da comida medíocre e encomendada do restaurante da esquina. Restava o pequeno apartamento de cores pardas. Agora estava a filha lá, sentada no sofá do pai, fazendo a visita. Ela sentava-se como visita e sentia-se como visita. O sofá tinha uma capa protetora de tecido sintético que não ajudava muito a visita a permanecer sentada. A trama áspera e escorregadia fazia com que a permanência no sofá fosse um suplício, dentre todos os outros suplícios do cenário. Uma aventura, um risco, a iminência de desgosto a acontecer e o desconforto do sofá. Permanecer sentada era quase uma maratona. Era preciso erguer o corpo e endireitar as costas a cada cinco minutos, fazendo forças com as pernas, com os pés apoiados firmemente no chão, no curto espaço de chão descoberto pelo tapete felpudo, para permanecer sentada ali. Mas todo esse esforço era menos difícil do que o penoso esforço de conversar com o pai. O pai, que não falava. Sentado no outro sofá, o menor, de dois lugares, tinha também o mesmo tecido, com apenas uma diferença, a cobertura protetora parecia respeitá-lo, ao menos não expulsando seu corpo frágil para fora, de forma que ele não tinha que lutar para ficar sentado. Anos e anos se passaram e a mãe não veio. A mãe, salvadora da pátria, não podia mais vir. Não podia mais entrar na sala e puxar um assunto qualquer que aquecesse o ambiente. A mãe não podia mais contribuir com o seu sorriso nem com o seu cardápio, coisas que enchiam os corações de alegria, ao menos enquanto durassem as refeições. A mãe fazia falta. Meu Deus, como ela fazia falta! E aquela falta doía mais quando a filha olhava para a reles árvore de natal, pequena e pobre, meio torta, ao lado do sofá entre ela e o pai. Ela se lembrava da mãe, dos natais passados, da árvore que a mãe arrumava – só isso já era um espetáculo – e do papel que a mãe tinha escolhido representar. O papel da protagonista da história era o papel da mulher feliz e vencedora. Seria uma versão adulterada da Cinderela, onde a única coisa que permanecia da história original eram as tarefas intermináveis. O resto era diferente. O baile era a mãe dançando entre as coisas, no espaço da sala de estar, executando as tarefas com uma alegria suprema, como se viver fosse um favor que era preciso retribuir. O jeito mais apropriado de retribuição sempre foi e sempre será a maldita gratidão. Então sorrir e ser feliz eram sinais de gratidão à vida, mesmo aquela vida estragada pelo mau-humor crônico do pai. A vida precisava ser vivida e paga com alegria. A alegria era o antídoto que a mãe usava para espantar a dor e o amargo das coisas que não deram certo, e das coisas que nunca iam mudar. Talvez, por isso, a filha tivesse um tal desprezo pela alegria, ou pela demonstração sistemática da alegria, que recusava-se firmemente a participar do “baile” na sala de estar. Porque nada pode ser, neste mundo de meu Deus, vinte e cinco horas por dia, totalmente ou sempre alegre ou contente ou feliz. Aquele sistema de alegria não servia para ela. Porque o drama não tinha fim. Afinal, onde estava a fada-madrinha? A filha esperava a reviravolta da história. Aquela hora em que o drama se estreita e atinge um ápice e na tensão do peso das circunstâncias, torce a trama para um novo caminho, que anuncia a resolução. Agora, vai! E o príncipe? Esse era o item mais difícil do espetáculo, o ator estava mais para mendigo louco do que para príncipe. Seria realmente um grande feito quando a fada-madrinha chegasse, e ao invés do milagre do vestido, primeiro sinal da prodigiosa força da sua varinha, transformasse o mendigo louco em príncipe. Mas a fada-madrinha nada de aparecer. Será que um dia ela chegaria e transformaria a alegria falsa em verdadeira? Se houvesse uma fada-madrinha... Ela, com sua varinha mágica, poderia transformar o pai num alguém que desejasse ser normal, que com um humor normal, às vezes conversasse e ficasse, de vez em quando, modestamente, discretamente, feliz. Mas, nesse mundo louco, milagres só em livros e desgraças reais em profusão. Não podemos deixar de crer – também era uma outra especialidade da mãe: crer – que coisas boas podem acontecer. Ela deletava a parte das desgraças. Dessa parte ela não se lembrava nunca. Ignorava. Era o seu jeito de lidar com as coisas que não conseguia mudar. Não existem só as desgraças. Existem coisas boas acontecendo, agora mesmo. Onde? A filha, no início, não duvidava disso, apenas os momentos bons eram tão poucos e foram rareando e rareando que não sobrou mais nada senão a tristeza e o desgosto, de forma que a filha, ainda menina, deixou de esperar que coisas boas acontecessem. A mãe dizia que para que as coisas boas acontecerem era preciso atraí-las com um coração feliz. Então, nos dias em que a mãe se achava triste, com a alma cortada em pedaços e o coração em migalhas espalhado no peito, ela tomava banho e punha-se a perfumar-se e arrumar-se, num espetáculo solitário e frenético, até que ficasse linda e irretocável, perfeita e bela, como ela queria ser. E ao se olhar no espelho, vendo-se perfeita e bela, todas as tristezas iriam embora, porque naquela imagem refletida, não havia lugar para elas. A mãe, naturalmente elegante e graciosa, arrumava-se diante do espelho, reconstruindo-se do caos que foi a noite anterior. Tampando as dores e as olheiras com pancake e rouge. Haja carmim! Mamãe, ponha um colar de pérolas! pedia a menina. Não, pérolas, não... (ela nunca usava pérolas). As pérolas são o sofrimento da ostra. Então, será que a culpa era da filha, que não ria, e não era feliz? A filha, nisto se parecia com o pai. A filha não existiria sem aquele pai, se fosse de outro pai, seria outra filha. Logo ela acabou achando que era melhor se pintar também. Portanto, era vetado por a culpa no pai. A família é sagrada, dizia a mãe. Pai é pai, mãe é mãe. Não se critica, não se questiona, se aceita, se honra, se obedece. Com humor ou sem humor, com amor ou sem amor. Aceita-se e vive-se. Não se sabe por quê, a filha lembrou de um ditado que dizia "família só a sagrada, mesmo assim na parede pregada". E intimamente riu-se do trocadilho. Espera-se. Espera-se, agarrando um fiapo de crença emprestada de que as coisas boas ainda iriam chegar, porque elas existem e era só uma questão de tempo. Agora o tempo passou, a mãe morreu, os filhos ficaram sozinhos e orfãos e o pai ficou com eles. Que ironia, o pai ficou com os filhos! Ele que nem sequer sabia conversar com os filhos. Ele, que não sabia do que tinha acontecido na infância deles. Ele, que nunca perguntava nada e portanto nada sabia deles, a não ser as notas dos boletins e de algumas brigas na rua. Ele, que nada sabia daqueles filhos que ele mesmo tinha gerado, no vigor da sua juventude, no calor da sua paixão carnal pela mãe. Ele, que esquecia dos aniversários. Então agora, aquele apartamento, que não tinha mas o cheiro dos cuidados da mãe, era o lugar que, de vez em quando, como numa visita, a filha vinha ver o pai, porque ele era o pai e ela precisava vê-lo, além do que ela só tinha aquele. Vinha sempre com uma pontinha de esperança de que algo novo acontecesse, que alguma coisa mudasse, quem sabe ele desta vez ficasse feliz com a visita da filha, quem sabe ele quisesse saber da vida da filha e fizesse umas perguntas e a conversa fluísse animada. Era essa a tal da fé que ela insistia em ter no coração, herança da mãe. Nos olhos baços do pai havia um denso vazio. Era como se ele não estivesse ali. Era como se, pouco a pouco, a tristeza dele sugasse sua alma para algum lugar, deixando o corpo abandonado ali naquele sofá, esperando por algum tipo de redenção. Talvez ele se lembrasse da mãe. Talvez lamentasse o amor que não deu. Talvez chorasse suas lágrimas secas e por dentro estremecesse de soluços o seu corpo duro. Talvez gritasse por dentro de si um grito lancinante de arrependimento. Porém, não havia mais tempo, o cenário mudou, as coisas se perderam, as forças acabaram. Sobrou apenas um imenso vazio, cheio de saudade. E tudo eram memórias, mergulhadas no silêncio da resignação.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Vidinha

Tenho tido uma imensa preguiça de ler tudo o que despejam nos meus emails. Espanta-me a nulidade dos assuntos que, disfarçados de propagandas, promoções e informativos urgentes e importantes, misturados com centenas de mensagens ralas, enfeitadas com lindas imagens e trazidas em primorosas montagens em power points. Todas se apresentam com aquele alarde, traço característico daquilo ou de quem geralmente encobre uma única coisa: toda aquela pasmaceira não tem nada de útil ou de valor a oferecer. É um poço de ninharias, um grande vazio, uma perda de tempo que eu não suporto mais. Por que as pessoas passam tanto tempo na internet, eu não sei. Ou melhor, pensando bem, eu sei. Acho que é uma perseguição inconsciente do mito do ócio produtivo. As imagens da tela vão hipnotizando a pessoa, que inconsciente e indefesa, está a ser seduzida pelo sonho da vida ideal. Com tanta informação, e tantas possibilidades, quem sabe se ache alguma boa idéia que faça a vida ficar menos vidinha, menos sem-graça, menos comum. Vem lá umas coisas úteis, mas a grande maioria, verdadeiramente, certamente, indubitavelmente, inútil, que nada mudam. Um dia, meu pai, com aquele tom sóbrio e taciturno de quem já sabe o que vem pela frente na vida, me passou uma reprimenda, a qual me produziu um grande desconforto, em ver que eu me deixava seduzir também por essas baboseiras recheadas de sandices. Meu pai me perguntou a queima roupa, "quanto tempo você passa conectada à internet? Ai, ai, ai... gemi interiormente, esperando a tormenta que no céu da sala se anunciava. Naquela época - sou obrigada a admitir, porque não posso, não quero e não vejo proveito algum em mentir - eu estava fanática pela internet. Mas como eu pensava, pensava e não respondia, lá veio à reformulação da pergunta de quem não tem o hábito de abandonar nada pelo meio: "Conectada a internet, quanto de trabalho você produz e quanto do seu tempo você gasta ali?” Aquela frase soou como uma martelada batendo na minha cabeça. Expliquei algumas coisas ao meu velho pai. Penso que por estar velho, vai se desinformando sobre a modernidade. Ledo engano. Sabe mais ele da modernidade e dos seus nocivos efeitos do que eu. Expliquei que era possível falar com pessoas que estavam do outro do lado do mundo, achar um texto pouco conhecido ou divulgado, achar um livro, executar uma pesquisa. "Pai, há sites puramente científicos", mencionei, em tom grave. Na internet podemos achar todos os tipos de produtos e objetos. Lá vem ele, "alguns poucos úteis e outros tantos milhares inúteis. E sabe qual outro grave problema decorrente disso? as compras on line." Ai, ai, ai... gemi de novo. As compras on line que são tão fáceis de se fazer e tão difíceis de se pagar. Como num passe de mágica, em dois ou três dias chegavam à minha porta com espantosa rapidez os objetos desejados, me poupando do transtorno de procurar em vão nas lojas entupidas, rodar dezenas de quilômetros para encontrar uma vaga de estacionamento na rua, ser apertada pelo povaréu, me cansar e só me aborrecer. Daí percebi uma coisa. Algo, de repente, ficou muito claro na minha frente. Foi quase como um despertar, uma súbita iluminação mental no entendimento: não se acha nada do que você precisa, q u a n d o você precisa! E quanto mais precisa, mais procura, menos acha, mais se cansa e mais tempo se perde, e mais se frustra. Às vezes, precisamos desesperadamente. Seja de um sapato, de um presente de aniversário, ou de um livro, ou do papel fosco para desenhar os imprescindíveis croquis de projeto, ou um vestido para uma festa. Já me resignei com essa verdade, acho até que é mais do que uma verdade, é uma lei, não diria de Murphy, mas de Deus, que não quer que a gente desperdice a nossa inteligência com coisas vãs. Não quer que a gente sofra e se aflija por coisinhas. Deus quer nos proteger da mediocridade. "Não estejais inquietos por coisa alguma". Coisas terrenas e dispensáveis, coisas e coisinhas, passageiras e insuficientes em si mesmas para nos agregar algum valor de vida. Parei de procurar nas lojas, achei que tinha me libertado daquele tormento exaustivo e obrigatório de entrar de loja em loja, como se fosse uma maratona, ver o que combina com o que... os brincos com a amiga, o livro com o outro amigo, a caneta para uma pessoa formal e importante, a maquiagem que acabou. Que idiotice, pensei, as pessoas andando de carro, vagando, entupindo o centro daqui que já é minúsculo - resultado da organização provinciana de séculos atrás, onde a sociedade rica pelo café, não precisava se preocupar com a largura das ruas. Achavam que o mundo ia permanecer como estava, as mulheres passeando de chapéu, sombrinha e luvas, proseando na rua, desfilando seus vestidos naquele passo lento de quem não tem mais nada pra fazer, senão usufruir e ostentar suas riquezas. Os homens também, talvez de forma pouco mais produtiva, liam o jornal e falando de política ou dos acontecimentos locais, ou das belas damas que desfilavam ao redor, mas também eles estavam a exibir-se. Pelo menos tudo isso prestava para terem alguma vida social, coisa que não temos hoje. Não paramos na praça, não caminhamos no fim da tarde para ver o por do sol e conversar com os amigos e tomar um café, pensando nos acertos e desacertos daquele dia. Trabalhamos e trabalhamos e corremos e não nos sobra tempo para viver. Não temos quase que nenhuma vida social, embora tenhamos dezenas de opções de programas para fazer com aqueles poucos amigos que restaram e que valem à pena. Então achei de ser esperta e tratei de aproveitar o mais excelente recurso da tecnologia que nos é oferecido na atualidade -tão facilmente, embora não de graça - que é a internet. "Agora vai me sobrar mais tempo!"Caí fragorosamente, numa armadilha, noutro círculo de futilidades, um redemoinho que nos puxa para dentro do computador e ali vão se esvaindo as horas da vida que já é tão breve... e a gente a se afundar no mar dos anúncios, das pesquisas, das informações, pulando de um link para o outro, numa busca que não cessa, que não tem fim. Enquanto isso, perdemos de conversar com os filhos, que já passam tempo demais fora de casa. E também perdemos de olhar nos olhos do marido ou da esposa, e ver que o dia dele ou dela não foi nada fácil, e como cairia bem uma boa conversa e talvez um abraço. Mas não dá. Estamos lá presos na cadeira e colados ao computador. Disfarço, grito e minto: "já vou indo aí" . Mentira, não vou nada, não saio dali. As pessoas vão dormir e eu fico sozinha, cansada, com dores das costas. A cabeça fervilhando de informações de demorarei um século para separar as úteis das inúteis. Ficarei perdida fazendo essa seleção e quando eu achar o resultado, o problema já se resolveu e aí a informação tão preciosa que eu achei, não adiantará de nada. Sonhamos sonhos tão grandes e mesmo assim fazemos da vida uma coisa menor, confusa e vã, como as imagens que pulam nas telas, nos deixando de alma seca e mãos vazias.

Acaso

Se por acaso eu me perder de mim, e puder segurar tua mão e me achar de novo, Se por acaso eu tiver frio e sentir o teu calor e me aquecer de novo, Se por acaso eu me afogar nas minhas lágrimas e nada me consolar e nada me restar senão o teu abraço, Se por acaso as cores fugirem do meu dia e tudo ficar preto e branco e cinza e o teu sorriso for toda a cor que me restar , Se por acaso eu sentir uma tristeza tão funda que eu fique surda aos sons do mundo e a única coisa que eu ouvir for o teu falar, Se por acaso as palavras, minhas amigas de sempre, me faltarem e depender de ti a minha oração, E o acaso me trouxer um novo dia, um novo olhar, uma nova vida, a recomeçar novinha em folha, isenta de medos e sombras, limpa e clara como o vôo de uma borboleta, Aprenderei a sorrir contigo, A olhar o teu olhar de amigo, Me erguerei no apoio da tua fraterna mão - não estará tudo perdido - e acharei graça no teu falar , e voltarei a ter alegria e cor e riso e canção pra cantar... Não será acaso, não! Será perdão, será renovo será o amor que rega a tênue flor que esmaecida floresce outra vez... Será o amor de Deus que me socorre através de você... 24.fev.08

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Inconvenientes

Não sei se era a noite que estava estranha ou se era eu. O calor do dia esquentou a casa toda, não havia um lugarzinho fresco sequer. De tanto calor, eu não consegui me concentrar para trabalhar. Um vento começou a soprar de mansinho, e o calor foi abaixando. Tomei um banho de banheira, com a água fria. Pus um cd de Bach e ouvindo aquela música tão sublime, pensei em todo o afeto que deve ter vazado do coração daquele homem quando compôs aquela música. Algumas lágrimas me vieram, incontroláveis. Ele era só um homem, apesar de ser um gênio. Como será que conseguia viver num mundo tão abafado, rude e hostil? Talvez seu refúgio fosse a música. Li certa vez que o ser humano está sempre procurando alcançar a plenitude. Por isso criamos os refúgios. Refúgio do tédio, refúgio da dor, refúgio das coisas chatas e repetitivas que constituem a maior parte da vida. Penso nos meus pequenos refúgios, o desenho, a música, os livros. Como saio revigorada de uma nova leitura! Parece que me trocaram a pilha. Saio pra vida e aguento mais um pouco. Fico até alegre. Não sei como tem gente que não gosta de ler. Não gostar de ler deve ser uma deficiência, ou uma maldição. Se a pessoa soubesse e sentisse como é bom, nunca iria escolher não ler. Se escolheu, é porque lhe fugiu o privilégio, como um vento que passou e ela não soube segurar. Fico pensando no que fazem certos professores que não ensinam os alunos a usufruir do prazer de uma boa leitura. Tornam-se enfadonhos, repetitivos... e com a motonia costumeira daqueles que só pensam em preencher papéis, com a burocracia das regras e a evidente falta de vontade de estar alí, fazem das aulas de português um suplício e da leitura um castigo. Mudem esses tais de profissão! Sentem-se atrás de uma máquina ou de uma escrivaninha! Sejam carimbadores, carimbem initerruptamente pilhas de papéis! Leiam e releiam seus formulários! E por favor, não conversem com gente de carne e osso. Gente precisa de gente que gosta de gente. Gente precisa da emoção de ver a vida além da mediocridade, das regrinhas, da canseira triste e dolorida do cotidiano. Gente precisa sonhar pra viver, alçar vôos sobre o mundo que nos soterra.
Mas o vento é como a felicidade, coisa estranha, não se segura. Só dura um breve instante e pronto, acabou. Se ventar, a única coisa que podemos fazer é nos expor e usufruir. É preciso ter uma vontade imensa de se perder, de se esquecer, de ser outra coisa, de ser outro alguém. É preciso estar naquele estado de um cansaço insuportável da mesmice deste mundo e desejar ver outros mundos, escritos no papel.
Ah, também é preciso que a pessoa, mesmo grande, não perca aquela vontade de voar que se tem quando é criança. Vontade de voar, ainda que seja por dentro de si mesmo. Refrescada pelo banho e pela música, pensei um pouco no que fazer, porque me dava de novo aquela vontade de fazer algo, embora fosse quase a hora de dormir. Bom, gente grande não tem hora de dormir. Eu acho que só tive hora de dormir quando era criança. Mas os suplícios da adolescência me fizeram o favor de acabar com a doce hora de dormir. Vieram as insônias, os desafetos, as decepções, as lágrimas, misturada num redemoinho de alegrias, de novidades, de excitações, de crises de riso, de sonhos e delírios provocados - por que não dizer - pela incomparável beleza e vivacidade da juventude. Talvez o ventinho que começava a soprar também tenha me chamado pra fora de casa, com aquela voz estranha e poderosa que só os ventos tem. Pensei em deitar e ler meu novo livro velho, raridade que achei no sebo e pela qual estou maravilhada. Mas me deu vontade de ouvir voz de gente, então liguei para uma amiga que gosta de ler, perguntando se ela gostaria de acompanhar-me para tomar uma fresca, e quem sabe um sorvete, um café ou qualquer coisa. Ela já estava deitada, embora pela voz se percebesse que estava bem desperta... e lendo - como sempre - como quem ingere um costumeiro e eficaz remédio antes de dormir. Ler cura muitas coisas. Escrever também. Já começa que quem lê nunca está sozinho. Ler é também viver experiências de outros, olhar pelos olhos de outro, experimentar outros aromas e sabores que não são nossos. O leitor vira amigo (ou inimigo) do autor, da personagem, ou do lugar. E daí se desenrola uma relação que pode durar uma vida. Um casamento sem inconvenientes. Um verdadeiro encantamento. Mas a amiga disse sim, vamos sair, sim. Saímos na rua e o vento fresquinho parecia nos receber, alegre, como se também desejasse nossa companhia para espantar o tédio. Estávamos a conversar e a comer tranquilamente a comida gelada e japonesa, quando alguma coisa aconteceu na minha casa e minha filha caçula me ligou, afita. Será que era um ladrão? Que mundo doido. Não se pode fazer nada porque não se tem sossêgo, nem dentro, nem fora de casa. Talvez fosse só impressão da menina, mas como não tinha jeito de saber, voltei correndo pra casa, com o temaki atravessado meio torto na garganta, já irritada por ter que interromper a agradável conversa, e o agradável jantar, para novamente me enfurnar na casa abafada.
Mas a vida é feita de inconvenientes, com alguns poucos intervalos.
Apesar de todas as enormes janelas, o ar quente e pesado recusava-se a sair, como visita inoportuna que não percebe a hora de ir embora. Enquanto corríamos para casa, liguei para o serviço de vigilância que temos, pedindo que eles fossem lá. Em dez minutos chegamos e vimos que estava tudo bem. O rapaz da vigilância, magro e simpático, já havia entrado na casa e verificado tudo. A menina respirava ofegante, como quem se afoga no próprio ar, o que me fez sentir uma certa piedade, incomum para a minha natureza materna, que antevê, sempre desconfiada, uma armadilhazinha nova preparada para o pato-pai ou pato-mãe cair nela. Filhos. Com aquela cara de santos e olhar angelical - não se iludam os incautos - os filhos (todos) podem, tentam e conseguem, muitas vezes, manipular e puxar as cordinhas do mais astuto e experiente pai/mãe, marionete. Conseguem, a despeito de toda a nossa inteligência, experiência e conhecimento - que ainda que sejam precários, são maiores que os deles - transformar-nos no pato, bicho burro e sem nexo. Pior que o pato, só galinha. Mas passado o susto, sentamos para conversar novamente. A amiga não foi embora. Esperou pacientemente a confusão passar, a menina acalmar e eu me sentar. Ficamos na calma do sofá. Escancaro as janelas e o vento entra generoso e sedutor, desejando novamente estar conosco. Esta amiga mora a poucos passos de mim. Ela é uma pessoa delicada e sensível. É o tipo de pessoa que jamais diria uma grosseria ou se portaria de forma inconveniente ou rude em lugar nenhum. Jamais ofenderia alguém. A sua voz não foi feita pra isso. Voz tranquila e aveludada, mesmo nas situações mais indigestas. Me agrada muito a sua companhia e o som da sua voz. Há nela uma simplicidade natural, uma delicadeza tão grande, que ela não precisa de enfeites, nem de brincos, nem de anéis, nem de perfumes, nem de trajes, nem de sapatos, nem de nada dessas coisas tolas que nós mulheres usamos para nos enfeitar e das quais nos tornamos escravas.
Só aquela voz e aquele sorriso já seriam suficientes. Ah, ela também tem um olhar alegre e vivo, olhar de quem acredita nas coisas boas, e por isso vê coisas boas. Com eles vestida, ela não desconfia que reflete uma suave luz, deixando um rastro de beleza. A conversa flui, sem trancos e nem solavancos. Emendamos um assunto no outro e parecemos duas loucas conversando cinco coisas ao mesmo tempo e uma acompanha perfeitamente o raciocínio da outra. E no meio dos assuntos, lembramos dos filhos e nos alegramos por eles. E no meio das alegrias dos filhos, lembramos de títulos de livros que lemos e que precisamos ver se a outra leu também. Agitadas como crianças, nos alegramos com as coisas que ainda vamos ler. Às vezes, acontece de compartilharmos aborrecimentos. É a vida, com suas mazelas. Mas não nos demoramos nos assuntinhos, simplesmente viramos a página e procuramos outra coisa pra falar. Na sala fresquinha, tanto que se conversa que se perde a noção do tempo. A menina também senta e conversa. Sem o medo, aprende a amar os livros e a entender o valor da amizade entre as mulheres, seres iguais em sua natureza. O vento traz a chuva, que molha um pouco o sofá, e traz também alguns relâmpagos. A filha da amiga já é moça feita. Ela liga perguntando pela mãe. Por que os filhos acham que sem eles não podemos sair de casa? Engraçado, não é? De repente, viramos mães. Passamos a cuidar daquele maravilhoso pacotinho chorão, indefeso, faminto, lindo bebê. Ficamos anos nessa vida, cuidando e carregando, dioturnamente. Olhamos a vida pela janela. Ficamos privadas de passear, de sair, até de viajar, até de ler! Ler? A que horas? O cansaço não deixa. A prazerosa leitura antes de dormir, transforma-se no derradeiro suspiro, finalizando a louca rotina, estancada pelo barulho do livro que nos cai na testa. De repente, eles entram na adolescência. Digo de repente porque a gente nunca percebe bem quando essa fase chega. A gente se incomoda com o estranhamento da criança e pensamos "o que há de errado com você hoje, hein?" E a pergunta se repete todos os dias, semanas e meses vão passando, até que alguém comenta... "êta idadezinha miserável!" Aí, cai a ficha. De protetora idolatrada passamos a chata de plantão. Não raro eles nos dizem, "mãe, arrume uma coisa pra fazer..." Põem-nos de lado e ficamos esquecidas e solitárias. Ou seria desprotegidas malas-sem-alça? Os filhos, ameçando altura, esquecem dos pais. Ficamos assim, largados e sozinhos, no silêncio da casa vazia. E isso, às vezes, dói muito. Ainda bem que temos os livros. Quer seja pela filha que liga preocupada, pelo avançado da hora ou pelos relâmpagos, a amiga se levanta e diz que se vai, antes que o temporal desabe. Abraço-a de leve, pois está muito quente - e ela, com aquela leveza, não precisa de apertão - e agradeço como sempre a sua proximidade e companheirismo. Ela vai e o temporal desaba. Mas fica o frescor do vento, o cheiro dos livros velhos e novos que estão sobre a mesa, e a eletricidade dos relâmpagos no ar. Penso em como é bom estar a poucos passos da amiga. Sei que ela está lá na casa dela e eu na minha. Mas está perto. E isso me faz pensar de que podemos nos ver quando quisermos. O perfume indelével da chuva é como a cintilante afeição que nos une: tão suave... porém não se dissipa.