Embora fossem dias de festa, os olhos das pessoas diziam outras coisas. No lufa-lufa das compras de natal, as ruas apinhadas de gente, as calçadas entupidas de camelôs e sorveteiros e toda a sorte de gente esquisita, os sons de odiosas músicas de pagode e axé, vindos de diversas lojas, o comércio enlouquecido competia entre si pra ver quem conseguia atrair mais cliente. Que idéia estúpida. Só faziam afugentar, pelo menos, os desesperados por descanso e quietude, como ela.
Sentou-se, exausta, no sofá da sala do pai, no apertado apartamento que agora era só dele, examinando o que mais naquele ano estava irremediavelmente diferente de quando mamãe partiu. Menos enfeites. Nenhuma flor em vaso algum. Não havia cheiro de comida, embora houvesse comida pra comer, comida própria para a ocasião - outra coisa estúpida do natal - mas tudo feito fora, então a casa não cheirava a comida boa, aquele perfume de ingredientes que dançava no ar quando a mãe estava ali, arrumando as coisas do natal. A mágica da comida. A ciranda dos ingredientes para formar o cardápio, escolhido minuciosamente para causar o efeito desejado, de acordo com o tema. Mamãe e sua arte dramática: a culinária.
Foi uma época luminosa da vida. Mas acabou-se. Restava o cheiro insuportável de cigarro do pai – último dos vícios - e da comida medíocre e encomendada do restaurante da esquina. Restava o pequeno apartamento de cores pardas.
Agora estava a filha lá, sentada no sofá do pai, fazendo a visita. Ela sentava-se como visita e sentia-se como visita. O sofá tinha uma capa protetora de tecido sintético que não ajudava muito a visita a permanecer sentada. A trama áspera e escorregadia fazia com que a permanência no sofá fosse um suplício, dentre todos os outros suplícios do cenário. Uma aventura, um risco, a iminência de desgosto a acontecer e o desconforto do sofá. Permanecer sentada era quase uma maratona. Era preciso erguer o corpo e endireitar as costas a cada cinco minutos, fazendo forças com as pernas, com os pés apoiados firmemente no chão, no curto espaço de chão descoberto pelo tapete felpudo, para permanecer sentada ali. Mas todo esse esforço era menos difícil do que o penoso esforço de conversar com o pai.
O pai, que não falava. Sentado no outro sofá, o menor, de dois lugares, tinha também o mesmo tecido, com apenas uma diferença, a cobertura protetora parecia respeitá-lo, ao menos não expulsando seu corpo frágil para fora, de forma que ele não tinha que lutar para ficar sentado.
Anos e anos se passaram e a mãe não veio. A mãe, salvadora da pátria, não podia mais vir. Não podia mais entrar na sala e puxar um assunto qualquer que aquecesse o ambiente. A mãe não podia mais contribuir com o seu sorriso nem com o seu cardápio, coisas que enchiam os corações de alegria, ao menos enquanto durassem as refeições.
A mãe fazia falta. Meu Deus, como ela fazia falta! E aquela falta doía mais quando a filha olhava para a reles árvore de natal, pequena e pobre, meio torta, ao lado do sofá entre ela e o pai. Ela se lembrava da mãe, dos natais passados, da árvore que a mãe arrumava – só isso já era um espetáculo – e do papel que a mãe tinha escolhido representar. O papel da protagonista da história era o papel da mulher feliz e vencedora. Seria uma versão adulterada da Cinderela, onde a única coisa que permanecia da história original eram as tarefas intermináveis. O resto era diferente. O baile era a mãe dançando entre as coisas, no espaço da sala de estar, executando as tarefas com uma alegria suprema, como se viver fosse um favor que era preciso retribuir. O jeito mais apropriado de retribuição sempre foi e sempre será a maldita gratidão.
Então sorrir e ser feliz eram sinais de gratidão à vida, mesmo aquela vida estragada pelo mau-humor crônico do pai. A vida precisava ser vivida e paga com alegria. A alegria era o antídoto que a mãe usava para espantar a dor e o amargo das coisas que não deram certo, e das coisas que nunca iam mudar. Talvez, por isso, a filha tivesse um tal desprezo pela alegria, ou pela demonstração sistemática da alegria, que recusava-se firmemente a participar do “baile” na sala de estar. Porque nada pode ser, neste mundo de meu Deus, vinte e cinco horas por dia, totalmente ou sempre alegre ou contente ou feliz.
Aquele sistema de alegria não servia para ela. Porque o drama não tinha fim. Afinal, onde estava a fada-madrinha? A filha esperava a reviravolta da história. Aquela hora em que o drama se estreita e atinge um ápice e na tensão do peso das circunstâncias, torce a trama para um novo caminho, que anuncia a resolução. Agora, vai! E o príncipe? Esse era o item mais difícil do espetáculo, o ator estava mais para mendigo louco do que para príncipe. Seria realmente um grande feito quando a fada-madrinha chegasse, e ao invés do milagre do vestido, primeiro sinal da prodigiosa força da sua varinha, transformasse o mendigo louco em príncipe. Mas a fada-madrinha nada de aparecer. Será que um dia ela chegaria e transformaria a alegria falsa em verdadeira? Se houvesse uma fada-madrinha... Ela, com sua varinha mágica, poderia transformar o pai num alguém que desejasse ser normal, que com um humor normal, às vezes conversasse e ficasse, de vez em quando, modestamente, discretamente, feliz.
Mas, nesse mundo louco, milagres só em livros e desgraças reais em profusão. Não podemos deixar de crer – também era uma outra especialidade da mãe: crer – que coisas boas podem acontecer. Ela deletava a parte das desgraças. Dessa parte ela não se lembrava nunca. Ignorava. Era o seu jeito de lidar com as coisas que não conseguia mudar. Não existem só as desgraças. Existem coisas boas acontecendo, agora mesmo. Onde? A filha, no início, não duvidava disso, apenas os momentos bons eram tão poucos e foram rareando e rareando que não sobrou mais nada senão a tristeza e o desgosto, de forma que a filha, ainda menina, deixou de esperar que coisas boas acontecessem.
A mãe dizia que para que as coisas boas acontecerem era preciso atraí-las com um coração feliz. Então, nos dias em que a mãe se achava triste, com a alma cortada em pedaços e o coração em migalhas espalhado no peito, ela tomava banho e punha-se a perfumar-se e arrumar-se, num espetáculo solitário e frenético, até que ficasse linda e irretocável, perfeita e bela, como ela queria ser. E ao se olhar no espelho, vendo-se perfeita e bela, todas as tristezas iriam embora, porque naquela imagem refletida, não havia lugar para elas. A mãe, naturalmente elegante e graciosa, arrumava-se diante do espelho, reconstruindo-se do caos que foi a noite anterior. Tampando as dores e as olheiras com pancake e rouge. Haja carmim!
Mamãe, ponha um colar de pérolas! pedia a menina. Não, pérolas, não... (ela nunca usava pérolas). As pérolas são o sofrimento da ostra.
Então, será que a culpa era da filha, que não ria, e não era feliz? A filha, nisto se parecia com o pai. A filha não existiria sem aquele pai, se fosse de outro pai, seria outra filha. Logo ela acabou achando que era melhor se pintar também.
Portanto, era vetado por a culpa no pai. A família é sagrada, dizia a mãe. Pai é pai, mãe é mãe. Não se critica, não se questiona, se aceita, se honra, se obedece. Com humor ou sem humor, com amor ou sem amor. Aceita-se e vive-se.
Não se sabe por quê, a filha lembrou de um ditado que dizia "família só a sagrada, mesmo assim na parede pregada". E intimamente riu-se do trocadilho.
Espera-se. Espera-se, agarrando um fiapo de crença emprestada de que as coisas boas ainda iriam chegar, porque elas existem e era só uma questão de tempo. Agora o tempo passou, a mãe morreu, os filhos ficaram sozinhos e orfãos e o pai ficou com eles. Que ironia, o pai ficou com os filhos! Ele que nem sequer sabia conversar com os filhos. Ele, que não sabia do que tinha acontecido na infância deles. Ele, que nunca perguntava nada e portanto nada sabia deles, a não ser as notas dos boletins e de algumas brigas na rua. Ele, que nada sabia daqueles filhos que ele mesmo tinha gerado, no vigor da sua juventude, no calor da sua paixão carnal pela mãe. Ele, que esquecia dos aniversários.
Então agora, aquele apartamento, que não tinha mas o cheiro dos cuidados da mãe, era o lugar que, de vez em quando, como numa visita, a filha vinha ver o pai, porque ele era o pai e ela precisava vê-lo, além do que ela só tinha aquele. Vinha sempre com uma pontinha de esperança de que algo novo acontecesse, que alguma coisa mudasse, quem sabe ele desta vez ficasse feliz com a visita da filha, quem sabe ele quisesse saber da vida da filha e fizesse umas perguntas e a conversa fluísse animada.
Era essa a tal da fé que ela insistia em ter no coração, herança da mãe.
Nos olhos baços do pai havia um denso vazio. Era como se ele não estivesse ali. Era como se, pouco a pouco, a tristeza dele sugasse sua alma para algum lugar, deixando o corpo abandonado ali naquele sofá, esperando por algum tipo de redenção. Talvez ele se lembrasse da mãe. Talvez lamentasse o amor que não deu. Talvez chorasse suas lágrimas secas e por dentro estremecesse de soluços o seu corpo duro. Talvez gritasse por dentro de si um grito lancinante de arrependimento. Porém, não havia mais tempo, o cenário mudou, as coisas se perderam, as forças acabaram. Sobrou apenas um imenso vazio, cheio de saudade. E tudo eram memórias, mergulhadas no silêncio da resignação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário