sexta-feira, 8 de junho de 2012

Obrigações

Não me obrigue a sorrir quando tenho vontade de gritar. O vizinho do lado aparece com seu barulho costumeiro, que chegou antes dele. Como tem gente que pode ser tão grosseira? Ele se mudou e não me disse olá. Ele não se apresentou, mas me aborrece. O que é esse barulho todo? É um espetáculo pobre e desengonçado de estar vivo, onde as pessoas não pagam ingresso, mas são obrigadas a ver. Ele fecha o portão da sua garagem como se fechasse o porão do inferno, com um barulho horripilante, de ferro torto e corroído de ferrugem. Ele deixa o lixo num saco sobre o chão da calçada. Ironicamente, a correspondência dele às vezes vem parar na minha casa e eu tenho que ir devolver. Eu e a minha educação. Só me mete em encrencas. E eu que pensei que o carteiro fosse meu amigo. Outro dia uma mulher, talvez mulher dele, veio me pedir um favor estranho. Que eu gritasse (hã?) pelo muro e chamasse o filho dela que estava dormindo (hã?) e não a ouvia bater no portão. Minha vontade era fingir ser outra pessoa e não morar na minha casa. Mas a mulher do aborrecedor me conhecia e insistia. Disse que estava sem chave de casa e fiquei parada feito boba na calçada sem ninguém. Menti que estava a esperar minha filha que demorava a chegar. Não era para este homem viver aqui. O estorvo da sua pessoa não combinada em nada com nada do que existe nesta rua de vizinhos gentis e amigos, com flores nos jardins e calçadas lavadas. Minha rua está muito feia, todas as flores morreram só as árvores resistem a esse frio congelante, e mesmo assim perderam a beleza do seu vigor, estão com aquela cor macerada e nauseante. Não me obrigue a gostar da rua neste frio. Esta não é a minha rua, a rua florida e quente que conheço. Nesta rua ouvia a voz do meu melhor amigo, que me chamava para olhar os pássaros e ver que a romã já tinha florido. Seu sorriso se foi como o sol que se recolhe no inverno. A única coisa que permanece igual são os tijolos e ladrilhos das fachadas, pois podem ser independente do sol. Estou a ler um dos livros das coleções de meu velho pai. Um livro de contos de Eça de Queirós. Tenho o livro, mas o meu é novo. Peguei o dele, velho, bem velho. Quem sabe eu ache nas páginas amareladas um escrito dele, com aquela letra redonda e bonita que ele tinha. Quem sabe eu ache algo que me mostre que ele foi alegre e feliz um dia, que a vida não era só obrigações, porque já não me lembro. Não costumo aborrecer Deus com pedidos banais, mas hoje estou a pedir desesperadamente que o sol volte.

3 comentários:

  1. Rosa,voce se expressa muitissimo bem.E uma delicia ler teus textos,as palavras fluem com tanta leveza e ao mesmo tempo formam imagens tao reais que ficamos sempre com um gostinho de quero mais...ADOREI1bjs

    ResponderExcluir
  2. Lindo Rosa...como tudo que escreve! Me identifiquei com o vizinho, todos são iguais...rs, mas a maneira de você escrever é única, tem poesia nas coisas mais banais.

    A última parte,sobre o livro de Eça de Queirós, concordo plenamente com você, um livro já manuseado tem seus encantos.
    bjs, de seu amigo Eder

    ResponderExcluir
  3. Que lindo!Como eu gosto da tua maneira de manifestar seus sentimentos.Me identifico tanto, mas não tenho esse dom de escrever.Bj no teu coração. Mary.

    ResponderExcluir