sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Não sejas médico
Nas minhas andanças e pesquisas, lendo sobre a história de Bragança, encontrei esse texto, muito interessante e até engraçado. A grafia é a da época. Me intrigou ver algo escrito a tanto tempo, por alguém que desconheço mas no entanto, revelou-me fielmente a opinião. Mistérios da vida...
Rosamaria
Não sejas médico
O indivíduo que julga poder ser agradável em tudo é vitima de uma ilusão. É absolutamente impossível agradar a todos. O redator de um jornal é o primeiro que descobre essa tendência do gênero humano. O ministro de um culto sabe também com o que se faz ou se deixa de fazer. O médico é outro personagem que tem que lutar mais nesse sentido. Se o médico veste-se bem e usa chapéu algo, diz o povo que é um médico figurino; se porém, não cuida de seu vestuário, acusam-no de falta de dignidade. Se freqüenta a sociedade, anda à cata de popularidade. Se visita seus clientes quando estão bons, acusam-no de explorá-los indo para jantar, ou pedir dinheiro emprestado. Se vai à igreja, é por hipocrisia, tratado de tirar partido mediante as simpatias religiosas da comunidade; se não vai, é um infiel ou socialista. Se a mulher do médico não paga a visita que lhe fazem, é orgulhosa; se paga, fal-o para chamar clientes, a quem seu marido depena. Se quando sai de carro, anda depressa, fal-o para dar impressão que o doente é de importância. Se anda devagar, é porque não se importa que os doentes morram antes que chegue. Se o doente cobra saúde, foi devido à Providência; se o enfermo morre, sua morte atribui-se ao médico. Se o médico é sociável e conversador, diz o povo, que não precisa de médico que conta o que sabe; se é taciturno ou silencioso, dizem que deveria animar seus enfermos. Se fala de política, o médico não deveria ter opinião política e se não fala, é um homem que se acomoda a tudo sem opinião própria. Se não apresenta logo sua conta, é com o fim de evitar que o paciente chame outro médico; se apresenta logo, é porque desconfia ou está precisando de dinheiro.
Poderíamos encher um capítulo, com as tribulações de um médico.
Página 78-79
Autor provável (a confirmar ): Waldemar Ferreira
Bragança Bi-Centenária
Edição de 1964
domingo, 27 de julho de 2008
Nós
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A pequena cidade me parece sempre igual, sempre pequena, cercada por gente estranha e turista que vem apreciar a quietude que não tem.
Sempre que posso, volto. Sempre que volto, presto atenção, para ver se entendo este lugar.
A estrada de acesso é simplesmente vergonhosa. O asfalto já se foi há muito. Quilômetros e quilômetros de buracos e pó, subindo a montanha.
Mas é com graça que a pequena cidade se acomoda no meio das colinas. No frio, a neblina encobre seus contornos e empresta-lhe um ar de mistério. O sol do inverno realça-lhe a simplicidade.
Na única avenida, as lojinhas, bares e restaurantes de fachada enfeitada, fazem de tudo para seduzir quem passa. A avenida nada mais é do que uma rua de seis metros de largura, de paralelepípedos e uma calçadinha. Os visitantes se apertam e se trombam na calçada, com suas sacolas de compras, seus óculos de sol, ávidos por novidades.
De dia, aquele burburinho. O sol deixa tudo mais bonito. De noite, a música dos bares e a calma dos namorados. Os casais passeando, sem pressa. Gente velha e gente nova. Todo lugar tem café e chocolate. Entramos num cantinho para nos abrigar do frio.
Neste silêncio, posso ouvir de novo as vozes das nossas conversas, empacotadas a meses esperando um lugar e um tempo para acontecer.
Quantas coisas sem falar. Mas será que é preciso falar tudo?
Será que a fala é um registro fiel do que sentimos ou do que vemos?
Tenho obsessão pelas palavras.
Talvez o silêncio se preste melhor como testemunha de certas circunstâncias.
Talvez ouvir apenas o bater de um outro coração além do seu próprio seja mais do que suficiente. Seja um presente.
As cidades são como as pessoas, querem ser amadas, querem ser lembradas.
Não há como pensar só em si vendo tão sublime paisagem.
Acontece que a mão do homem a tudo quer dominar, mas não se pode dominar aquilo que é sublime. Posso somente me render.
O orvalho da noite cai, testando-nos a vontade de andar na rua.
Continuamos de mãos dadas, andando devagar, enfrentando o frio.
Fazia tanto tempo que a gente não se olhava. Aqui parece que estamos a salvo, por enquanto.
Quando voltarmos para casa, a pressa da nossa vida vai nos consumir de novo, e de novo ficaremos longe um do outro, incomunicáveis. Nos falaremos sem nos olhar. Nos esbarraremos no corredor daquela casa imensa. Estaremos ocupados e aflitos.
Arquivaremos nossas conversas por mais alguns meses, até as próximas férias.
Mas como eu gosto de olhar você. Esparramado na cadeira tão pequena, você parece enorme. Distraído, com as pernas estiradas no meio do caminho, atrapalhando a passagem, você não sabe da sua ternura que me amolece.
Não há como resistir à força da delicadeza.
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segunda-feira, 21 de julho de 2008
Os Muros da Mediocridade
Certas coisas me deixam completamente perplexa. Cada vez fica mais difícil nos comunicamos com as pessoas. As pessoas não falam, e se falam, falam de forma confusa e inconclusiva. Quem está pra escutar, não escuta. Se escuta, não presta atenção. Se presta alguma atenção, não se interessa. Se escreve, não lê o que escreve. Quem lê, não presta atenção no que lê e não entende nada. E não responde. Onde vamos chegar?
Por isso, nos achamos melhor com as máquinas.
Há um certo escritor famoso, já idoso, de aparência acadêmica e respeitável, de cabelos brancos, que sempre repete o mesmo nome da heroína, seja em que estória for. As pessoas sentam-se em frente à TV nas suas poucas horas de descanso, no sofá da sala, ãs vezes até apinhados, bem perto, e poderiam por a conversa em dia, saber um do outro, se inteirar do que acontece com aquele vizinho-próximo-sangue-do-mesmo-sangue.
Mas agora, conversar? Na hora da novela? Como se aquela hora fosse sagrada. Estão já, pelos anos desse vício horroroso e inútil, doutrinadas a acompanhar a sequencia de acontecimentos de estórias descabidas, sem nexo, lotadas de exageros e aberrações, recheadas de falsos conceitos
de felicidade e sucesso, que certamente não se conseguem com as f'órmulas apregoadas todos os dias, capítulo a capítulo.
Nenhum conteúdo real, nenhuma situação plausível. O que acontece lá na telinha, não acontece na vida real.
Tá bom, mas as pessoas precisam sonhar, se esquecer de seus problemas, de suas mazelas, "relaxar" - odeio esta expressão, porque parece que relaxar significa parar de pensar - ainda que seja por algumas horas. Mas ver novela, pior ainda as brasileiras, não é sonhar, é se lançar num desfiladeiro de besteiras, crendices, ilusões, que pela constância, empurra-nos goela abaixo esses novos anti-conceitos. Digo anti-conceitos pois são exatamente o oposto de tudo o que aprendemos ser bom e certo para a vida, desde o relacionamento com as pessoas até a vida financeira. Todo mundo é rico, mas ninguém vê ninguém trabalhar.
Criou-se até a expressão popular, diante de algum absurdo: "mas como é novela, vai."
Aceita-se o absurdo. Sem senso, sem lógica, sem crítica, sem um fiapo de vínculo com a realidade, mas falando dela, na verdade, recriando-a e revestindo-a de outra coisa qualquer.
A enxurrada de baboseiras vem, atrativa, mas sem contéudo real, nem moral, e literário muito menos.
Mas a arte imita a vida e a vida imita a arte. E o triste é que, estando a vida pobre de valores, a arte aparece mais pobre ainda, e nesse espelho embaçado e distorcido, a vida vai se mirando, e como uma moça que se acha feia, precisa do espelho para lhe dizer que ela não é tão feia. Ela se aruma e se enfeita, porque não vê a sua própria feiura, nem vê que o seu rosto está sujo e enfeita-se com seus trapos de pobreza, ignorância e imundícia.
É bom lembrar que a palavra novela é um termo que define uma das três composições do
gênero literário chamado Romance.
A novela é, portanto, a classificação de uma narrativa em prosa, intermediária entre o conto, mais curto e o romance, mais longo. A novela cresce e se desenrola descrevendo aventuras, com o desenvolvimento de vários personagens, porém tudo girando em torno de um personagem central.
Essas tramas entrelaçadas vão se complicando e se estendendo, evidenciando as qualidades e defeitos da natureza humana, como o logro, a mentira, a vaidade e a inveja, em contra ponto com o amor, a bondade, a fidelidade e a resignação. Dessas situações dramáticas cria-se o conflito que geralmente progride para uma solução que culmina no final da trama.
Mais curta que o romance, mas não menos importante, grandes escritores usaram desta forma literária para escrever grande obras, conhecidas mundialmente, que se tornaram verdadeiros clássicos.
Entre elas, podemos lembrar de Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire; O Alienista, de Machado de Assis e a maravilhosa estória de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway.
Mas a mídia transformou o termo novela numa coisa comum e vazia, porque se apropriou despudorada e indevidamente desse termo para nos impingir toda sorte de baboseiras inventadas e ligadas sem lógica, com personagens que se identificam apenas pelo seu vestuário, adornos e trejeitos. Não se vê neles alma, nem personalidade, e nenhuma postura definida que revele o seu valor, de que lado eles estão, se do bem ou se do mal, mesmo porque pulam de um lado para o outro, conforme a conveniência. E lá vem eles com seus nomes repetidos. E daqui a pouco, daqui a nove meses, as pobrezinhas das crianças que nascerem vão ganhar dos seus pais os nomes daqueles personagens. Um nome achado assim, na baciada da feira, como fruta prestes a apodrecer, pior que um mercado de pulgas. Ah, mas porque a moça artista era bem bonita - que corpo escultural, deve passar a manhã na praia, a tarde na academia, e a noite, Deus sabe onde... - com aquelas mechas laranjas no cabelo e com a saia estampada que de tão curta, parecia um cinto.
E o moço, aquele mecânico sempre sujo, que físico! Burro como uma porta, falava tudo errado, mas lindo de morrer...
E vai o menininho crescer com aquele nome do personagem do mecânico burro. E a menininha como uma caricatura de fêmea.
Restará a essas crianças o esforço de remar contra a maré das coisas ridículas que os seus próprios nomes fazem lembrar. Que peso...
E aquele mesmo autor, famoso por produzir novelas e mais novelas “de sucesso”, já vem de novo dando uma entrevista na televisão, pra falar do seu próximo trabalho, que com certeza será outro estrondoso sucesso, dentro daquela emissora também de sucesso, considerada a melhor do país.
O renomado autor vem falando da nova Helena. O que será que ele pensa que tem de novo e interessante nessa maçante repetição?
Entra estória, sai estória, a heroína é de novo a Helena, com outros trajes, mas não raro, interpretada pela mesma atriz.
O que é isso? Me ponho a fazer conjecturas... Seria uma obsessão pela famosa Helena de Tróia? Será que o grande amor da vida, quem sabe um amor não correspondido, chamava-se Helena? Será que a sua mãe se chamava Helena e em sua homenagem, talvez no seu leito de morte, ele prometeu-lhe esta honra, aprisionando-se a essa condição irrevogável?
Mas volto a dizer, o que realmente é isso? Um pouco caso com a estruturação da arte da narrativa, com a composição de um personagem; uma desconsideração total com os cânones da
Teoria Literária, e com a Literatura (do latim littera, ou letras) que quer dizer "a arte de escrever". Escrever de forma artística. Ligada à gramática, a poética e a retória, a Literatura tem seus princípios, suas metas e sua ética.
E cá dê o compromisso do autor com a Literatura? Ah, o compromisso dele é com a emissora de sucesso que o faz ficar rico escrevendo baboseiras e a ela devemos o entortar diário da cabecinha dos nossos jovens, que já não é lá muito cheia de boas coisas. E a culpa é nossa que sentamos diante da televisão todos os dias, religiosamente, no mesmo horário.
Como criação artística, uma farsa, visto que não há nem criatividade, nem arte, na estória rala que se parece com o último sucesso e consequentemente repete a fórmula da cópia dos personagens mais atraentes e pares românticos enjoativos.
Como produto a ser oferecido ao povo, um grande desrespeito.
Porque deu certo um personagem central, fez sucesso, agradou os incautos, e os menos esclarecidos, os próximos protagonistas têm que carregar o mesmo nome?
Então isso é uma crendice, uma simpatia? Ora, faça-me o favor...
Mas adentrei nesse tema somente para dizer que as pessoas não conversam mais, e não terão nada mesmo pra conversar, porque não terão nada a dizer, porque suas mentes estão cheias de baboseiras.
A conversa no lar, ou fora dele, que estava já moribunda pela imbecilidade das novelas, agora está em coma devido à enganadora utilidade da internet. Fica cada um isolado no seu PC, no seu lap top, no seu quarto, e ninguém se vê ou se fala dentro de uma mesma casa. Cada vez mais imprescindível, ninguém faz mais nada no seu trabalho ou na escola, sem o computador e a internet.
Eu mesma ia viajar, e ao ligar para reservar o hotel, lembrei-me de perguntar, aflita, "por favor, aí tem internet?" Eu não nego que não ficaria no hotel se lá não tivesse essa praga da internet. Xingo, reclamo, estrebucho, mas preciso dela. Boa parte do meu trabalho executo através de um computador.
Mas olha o tamanho do absurdo. As pessoas não se falam, não se entendem, cada vez mais os relacionamentos de definem pela superficialidade. Vazios, vão ruindo e não subsistem.
As famílias se despedaçando. As crianças desenvolvendo neuroses e distúrbios psiquiátricos nunca antes vistos. Falta de atenção, falta de contato, falta de comunicação, falta da troca de experiências no meio familiar, falta de amor.
Alguém se lembre, por favor, que existe em todos os aparelhos, um botão liga e desliga.
Meu pai é extremamente prático e objetivo, e as conversas para ele devem ter começo, um meio e um fim, um propósito e uma resolução.
Nunca deixamos de conversar em casa, embora gostássemos muito de assistir TV, especialmente filmes.
Nunca conversamos em casa nenhum assunto que ficasse sem uma conclusão. Nenhum assunto que era mencionado deixava de ser discutido e apurado. Se fosse muito complexo, discutia-se durante várias ocasíões. Jamais era posto de lado. Não tinha esse negócio do ''deixa pra lá''.
O assunto, ou o problema era examinado, dissecado, esmiuçado, diagnosticado, e finalmente desvendado. Quando o problema era nosso, ou trazido por nós, filhos, éramos orientados a resolvê-los, dentro dos princípios que já tínhamos como regras de vida, atacando o problema de frente.
Nada de ficar em cima do muro. E se não pudéssemos resolvê-lo, pelo menos deixávamos clara a nossa posição ética a respeito, à vista de todos, sabendo de antemão que receberíamos confrontação e até hostilidade da maioria, geralmente dos colegas da escola, mas com o apoio e a proteção de nossos pais.
Mas era para nós honroso sustentar nossa opinião naquilo em que acreditávamos.
Creio que essa prática foi um dos maiores bens que meu pai nos ensinou - a refletir nas coisas e chegar a uma conclusão sobre elas, examinando-as não segundo a opinião pública do momento, não segunda a moda, nem segunda a mídia, mas segundo os princípios éticos e fundamentais que regiam a nossa vida, assumindo uma postura firme diante do problema.
Essas conversas em família, na hora da refeição, ou na hora de ir dormir, nos treinaram a discernir as coisas de valor das sem valor. As atitudes de valor, que denotavam um reto caráter e alguma nobreza, daquelas mesquinhas, medíocres, egoístas, falsas, maldosas e, portanto,
desprezíveis e não dignas de se gastar tempo com elas, nem com as pessoas que as praticavam.
Essas conversas nos uniram mais e despertaram em nós a mesma força em buscar o bem, a retidão e a verdade.
A esses assuntos medíocres, sem importância e sem valor, geralmente nada edificantes, aqui em casa chamamos de ''assuntinho''. Quando um assuntinho insiste muito em nos atrapalhar, achei um jeito muito eficaz de nos livrarmos dele. Deixei à mão, na sala de estar, alguns bons livros. Percebo que o assuntinho não se manda e então começo a ler um trecho de algum livro.
E é muito engraçado, pois a estultícia do assuntinho não suporta o saber, nem o conhecimento, nem a cultura. Muito menos suporta a sabedoria, e menos ainda a verdade. Então, murcha,
se desintegra e some. E não volta mais.
Se tivermos que gastar o nosso tempo - e com certeza ele está a escorrer pelos nossos dedos - que seja com as pessoas. Que seja usando a ferramenta da fala, coisa tão especial que o Criador em sua sabedoria, deu só aos homens.
Usemos deste bem que é a fala, que se bem desenvolvido vira comunicação, especialmente com
aqueles que dependem de nós para aprender a vida, os nossos filhos, nossos primeiros alunos.
Gastemos nosso tempo com coisas que valham a pena, que signifiquem algo, que perdurem, que permaneçam debaixo deste céu que nos protege.
Que faça alguém perdido se encontrar. Usemos de palavras que tragam verdade que dêem significado e um sentido para a vida. Significado para preencher os corações esburacados e sedentos.
Que falando e comunicando, possamos reconstruir com a verdade um mundo doente e enlouquecido, afundado nas suas de imagens falsas, e conceitos falsos, que nada mais fazem do que gerar menos vida.
Diariamente, os jornais nos trazem aquela avalanche de notícias, sem cessar.
Bem informados, não obstante as informações serem duvidosas, cercados pelos mais fantásticos avanços tecnológicos, dos aparelhos mais incríveis e das máquinas mais inteligentes,
caminhamos com essa vida debilitada, confusa, sem perspectiva e fadada ao fracasso.
E em falência, agonizante, sem remédio e sem tratamento, nos enganamos pensando estar construindo um mundo melhor enquanto estamos vivendo em ruínas, por darmos lugar à indústria da mentira, da falsidade, da futilidade e da maldade.
Ela gera para nós o mal, e ensina-nos a viver sem o bem - que não está nas novelas e nem tampouco na internet - e nos encarcera nos muros da mediocridade.
quinta-feira, 8 de maio de 2008
Trajetos
"Alô, mãe? " A ligação do celular é sempre péssima. Me dá vontade de jogar o maldito aparelho pela janela. Por que essas coisas custam tão caro e servem pra tão pouco? Entre os chiados ouço as explicações da viagem que terminou bem sucedida. "Mãe, tá tudo bem... manda um beijo pro papai. Ele tá aí?" Tá sim, meu filho, espera um pouco. Transfiro a ligação sem pensar no tanto de coisas que não falamos.
A personagem mãe é curiosa. Mãe-vigia, mãe-briguenta, mãe-que-ralha, mãe-que-ensina, mãe-que-cuida. Ah, não quero ser essa mãe, não. Quero ser a mãe-amiga, mãe-que-ri, mãe-que-cochicha-com-o-filho. Mãe que guarda segredo. Mãe que bagunça o quarto e a sala também, igualzinho aos filhos.
Amigo é amigo, não importa a idade. Meu avô era meu amigão. Ria comigo e deixava eu rir dele.
"Criança má-criada... não se ri dos mais velhos..." A empregada da minha avó resmungava quando me via de conversa furada com meu avô. "Toco de gente", dizia, lançando-me um olhar de desdém.
A casa está uma desordem. Tenho sorte de ter a Nair que, não me pergunte por quê, gosta de vir trabalhar aqui em casa. Acho que deve ser porque todo mundo aqui tem um parafuso solto, então nunca se vê o tédio, muito pelo contrário, cada dia é uma aventura.
Tem dia que o marido chega rindo e provoca a Nair. "Nair, você já tomou vacina pra gripe, sabe, aquela pra idoso?" E segura a boca apertando a bochecha pra não rir logo de cara da pilhéria.
Ela espicha o olho da cozinha e faz um muxoxo, torcendo a boca. Lá vem o troco: "ah, é? sem graça essa brincadeira ... o sinhô tem a mema idade qui eu! "
As crianças desatam a rir a não poder mais. Crianças? Desculpe, é o vício da linguagem. Não tem mais criança aqui em casa, só adolescentes.
Adolescentes médios, adolescentes novos e adolescentes muito velhos.
A Nair alegra a minha vida. Agradeço a Deus quando ela vem. Ela vem com aquela disposição de lavar e mexer e levantar as coisas. Nada fica no lugar com a Nair. Não dá pra ficar triste perto da Nair. A Nair consegue passar a roupa toda da lavanderia. Aqui nós medimos a roupa por metro. Um metro, dois metros, três metros, a pilha vai aumentando. Agora, sem o filho, a pilha está murchando. Às vezes, ver a pilha murcha me dá tristeza e saudade do menino.
Mas ainda tem muito metro pra passar. Não dá pra ficar pensando. Digo que a lavanderia é a minha senzala. Minhas amigas riem de mim, mas sabem que é verdade. Elas também tem que se haver com suas ''senzalas'' e pilhas murchas.
Mas a Nair dá conta desta casa imensa e cheia de janelas. Ainda por cima nos atura, rindo. Detesta anotar recado e escrever, nem peça pra ela explicar quem ligou e o que queria. Mas do resto, ela dá conta mesmo, pra ninguém botar defeito.
Ela chora quando o menino vai embora. Chora no meu lugar. Chora de pena de mim.
A Nair mima as meninas que ficam. Por quanto tempo ficam não sei, nem imagino. Mas por enquanto, ficam. Sorri pra elas, com aquele sorriso de mãe que ela tem.
Volto para os meus afazeres e deixo a Nair com as meninas conversando e morrendo de rir.
O celular toca de novo. Chiando e chiando, a conta do celular vai subindo, subindo, de tanto interurbano. "Mãe, manda o livro que eu esqueci". Mando, sim.
Mãe-prestativa. Mãe à prestação. De ligação em ligação.
Devagar a madrugada passa. Parece que as horas são maiores que a noite. A bagunça na casa denuncia minha ineficiência. As crianças que já cresceram e não são mais crianças são ainda bem bagunceiras.
Mas a comida estava boa. Caprichei no almoço. Hoje era dia de frango. Fiz um frango diferente, pus linguiça. Linguiça no frango? É. Não tenho mais preconceitos culinários. Porque alguém resolveu que isso não se mistura com aquilo, então eu tenho que seguir essa regra boba? Não sigo. Misturo, misturo e misturo e pronto.
A vida é misturada. A lágrima desce do lado do sorriso. Venta e chove e faz sol.
O quarto do menino agora está arrumado, mas vazio. Arrumou ele a sua pequena mala e foi-se embora, saudoso da sua casa de estudante. Engraçado é que hoje não chorei, não me descabelei. Hoje olhei o menino indo e vi que ele não era mais um menino. Como custei pra ver isso. Ele não é senão um homem que desconheço, cujos ímpetos sou incapaz de prever. A ternura do seu sorriso, no entanto, me amolece e quase me leva a pensar que ele me conhece por dentro. Mas ele também não me conhece. Não sabe o que senti por ele quando ele nasceu. Como foi o nosso primeiro olhar, o primeiro abraço. Os filhos. Os momentos com cada um deles nos meus braços. Longas horas de afeto, alegria, ternura e sonho. Eles não se lembram. É uma pena que as crianças não se lembrem desses primeiros anos da infância. Talvez Deus tenha permitido essa amnésia a fim de protegê-las das catástrofes dos pais inexperientes. Eu também não me lembro direito da minha mãe. Lembro de um dia quando pensei que tinha crescido. Pensei isso e fui correndo olhar no espelho e falar pra minha mãe. Lembro dela e de mim, os dois reflexos no espelho do quarto. Ela era tão alegre, tão sorridente e feliz. Olhava pra mim como se eu fosse o bem maior do mundo. E dizia que eu era mesmo. "Querida, você é meu tesouro". Faz algum tempo que ela partiu. Deixou-me um vazio cheio de lembranças, afeto e histórias.
Hoje fico pensando que deixamos nossos tesouros pelo meio do mundo, eles vão crescendo, arrumando as malas e indo embora estudar longe ou trabalhar num lugar diferente do qual nasceram. Riscam seus próprios trajetos.
Estamos na vida de mala na mão, de coração descamisado, no meio do vento das circunstâncias. Logo, logo, vira o vento, viram as coisas, chega gente e vai gente. Gente que nasce, gente que morre. Gente que cresce e vai. Gente que envelhece e fica. Gente de passagem.
Hoje foi um dia muito esquisito. Choveu, fez frio, ventou, fez sol. Nem o tempo sabia direito o que queria fazer. Muito menos eu.
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Outono de Dor
A brisa do verão se transformou em rajada de vento. Vento que chega com seu frio sugerindo, quem sabe, que se pare de gastar o tempo à toa, expondo tudo ao sol abrasador, como quem nada tem a fazer, a não ser se alegrar na vida.
O jornal chega meio molhado e um pouco sujo, no piso de mármore negro da minha porta. Nunca mais vi o jornaleiro. Aquele jornaleiro que eu conhecia nos meus tempos de infância, que andava de bicicleta atirando os jornais com uma pontaria genial, ar maroto e um sorriso trigueiro de quem está brincando de trabalhar, esse eu nunca mais vi.
Esse jornal vem sem bicicleta e sem sorriso. Não posso ver a cara do entregador, sei lá se ele é baixo ou gordo, se sabe quem eu sou, ou se sou para ele somente um endereço e um número. Fico a pensar a que hora misteriosa ele passa porque nunca o vejo. Se ele me visse, talvez me diria "bom dia", mostrando que se importa.
Mas o jornal chega do mesmo jeito, e eu tenho que lê-lo do mesmo jeito, embora eu preferisse o menino da bicicleta. Abro a porta e o vento subitamente entra e me circunda, num rodopio fino e rápido, meu pijama velho de flanela aparece por baixo do robe esvoaçando. O café esfria na xícara. Fecho a porta com certo esforço, resignada com a temperatura e com o clima indignos de confiança, como quase tudo nessa vida moderna, neste mundo moderno e estragado.
Pra quê ler o jornal se só tem notícia ruim? Um começo de náusea e dor me assalta quando leio sobre a pequena jogada pela janela. Mãozinha quebrada, corpo infantil dilacerado pelo chão duro no jardim do respeitável edifício residencial. Que tipo de gente é essa que joga uma criança inocente e indefesa pela janela, como se joga um papel amassado, uma embalagem usada, uma coisa qualquer que não tem mais valor?
Lamento profundamente viver neste mundo onde vive gente assim. Se pudesse, me mudaria para outro mundo. Convidaria meus amáveis vizinhos a irem comigo para o novo endereço. Levaria também meus amigos que moram perto e os que moram longe. Iria morar num lugar onde as pessoas valem mais que as coisas. Levaria todas as crianças comigo. Daria a elas o meu colo, meus beijos, meu sorriso, meu cuidado e tudo o que sei de amor. Leria estórias e falaria sobre o céu. Pintaria desenhos coloridos, faria casinhas de papel, guardaria seus bilhetes em caixas floridas e os leria de novo e de novo e de novo. Dormiria com elas abraçada e mal acomodada, para que elas jamais tivessem medo do escuro da noite.
Escreveria uma história feliz para cada uma delas, seu eu pudesse.
A minha vizinhança ainda é daquela que sabe o que acontece com o vizinho do lado. Eu sou a mais desavisada e atrasada de todos eles, mas recebo as notícias pelo vizinho da esquina, homem franzino e educado. Ele é esforçado e trabalhador, acorda cedo. Beija a mulher ao sair para o trabalho. É um bom pai. É um bom amigo.
Vez em quando ele vem e me avisa das coisas que estão acontecendo. Sua visita cordial quebra a solidão das minhas tardes.
Choro e fecho o jornal, desejando nunca ter lido o que li. Choro e penso em todas as crianças indefesas do mundo, à mercê de monstros disfarçados de pai. Choro porque será tarde demais para fazer alguma coisa, neste mundo onde não se sabe o que acontece no apartamento do lado, porque as pessoas são muito ocupadas para se importar com o seu próximo. Choro porque a pequena menina não recebeu o amor que ela merecia, sendo criança e tendo nascido para receber amor. Algum amor. Choro porque ela nunca mais verá a luz do sol, nem sentirá seu calor, nem sorrirá de alegria, nem pulará na cama, nem dará aquelas risadas maravilhosas que só as crianças sabem dar. Seu nome cairá no esquecimento. Daqui um tempo ninguém se lembrará dela. Porque outras notícias ruins virão e ocuparão espaço nos jornais e na televisão.
Choro porque aquela pequena flor, desprezada cruelmente, foi arrancada e esmagada, sem que pudesse desabrochar.
O telefone toca e me obriga a enxugar as lágrimas do rosto e a tocar a vida. "Já estou indo, já vou. Já chego aí" - digo, mecanicamente, sem ânimo de sair de dentro do pijama velho que me aquece.
Não há frio maior do que o frio da tristeza de uma alma sem amor.
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