quinta-feira, 8 de maio de 2008
Trajetos
"Alô, mãe? " A ligação do celular é sempre péssima. Me dá vontade de jogar o maldito aparelho pela janela. Por que essas coisas custam tão caro e servem pra tão pouco? Entre os chiados ouço as explicações da viagem que terminou bem sucedida. "Mãe, tá tudo bem... manda um beijo pro papai. Ele tá aí?" Tá sim, meu filho, espera um pouco. Transfiro a ligação sem pensar no tanto de coisas que não falamos.
A personagem mãe é curiosa. Mãe-vigia, mãe-briguenta, mãe-que-ralha, mãe-que-ensina, mãe-que-cuida. Ah, não quero ser essa mãe, não. Quero ser a mãe-amiga, mãe-que-ri, mãe-que-cochicha-com-o-filho. Mãe que guarda segredo. Mãe que bagunça o quarto e a sala também, igualzinho aos filhos.
Amigo é amigo, não importa a idade. Meu avô era meu amigão. Ria comigo e deixava eu rir dele.
"Criança má-criada... não se ri dos mais velhos..." A empregada da minha avó resmungava quando me via de conversa furada com meu avô. "Toco de gente", dizia, lançando-me um olhar de desdém.
A casa está uma desordem. Tenho sorte de ter a Nair que, não me pergunte por quê, gosta de vir trabalhar aqui em casa. Acho que deve ser porque todo mundo aqui tem um parafuso solto, então nunca se vê o tédio, muito pelo contrário, cada dia é uma aventura.
Tem dia que o marido chega rindo e provoca a Nair. "Nair, você já tomou vacina pra gripe, sabe, aquela pra idoso?" E segura a boca apertando a bochecha pra não rir logo de cara da pilhéria.
Ela espicha o olho da cozinha e faz um muxoxo, torcendo a boca. Lá vem o troco: "ah, é? sem graça essa brincadeira ... o sinhô tem a mema idade qui eu! "
As crianças desatam a rir a não poder mais. Crianças? Desculpe, é o vício da linguagem. Não tem mais criança aqui em casa, só adolescentes.
Adolescentes médios, adolescentes novos e adolescentes muito velhos.
A Nair alegra a minha vida. Agradeço a Deus quando ela vem. Ela vem com aquela disposição de lavar e mexer e levantar as coisas. Nada fica no lugar com a Nair. Não dá pra ficar triste perto da Nair. A Nair consegue passar a roupa toda da lavanderia. Aqui nós medimos a roupa por metro. Um metro, dois metros, três metros, a pilha vai aumentando. Agora, sem o filho, a pilha está murchando. Às vezes, ver a pilha murcha me dá tristeza e saudade do menino.
Mas ainda tem muito metro pra passar. Não dá pra ficar pensando. Digo que a lavanderia é a minha senzala. Minhas amigas riem de mim, mas sabem que é verdade. Elas também tem que se haver com suas ''senzalas'' e pilhas murchas.
Mas a Nair dá conta desta casa imensa e cheia de janelas. Ainda por cima nos atura, rindo. Detesta anotar recado e escrever, nem peça pra ela explicar quem ligou e o que queria. Mas do resto, ela dá conta mesmo, pra ninguém botar defeito.
Ela chora quando o menino vai embora. Chora no meu lugar. Chora de pena de mim.
A Nair mima as meninas que ficam. Por quanto tempo ficam não sei, nem imagino. Mas por enquanto, ficam. Sorri pra elas, com aquele sorriso de mãe que ela tem.
Volto para os meus afazeres e deixo a Nair com as meninas conversando e morrendo de rir.
O celular toca de novo. Chiando e chiando, a conta do celular vai subindo, subindo, de tanto interurbano. "Mãe, manda o livro que eu esqueci". Mando, sim.
Mãe-prestativa. Mãe à prestação. De ligação em ligação.
Devagar a madrugada passa. Parece que as horas são maiores que a noite. A bagunça na casa denuncia minha ineficiência. As crianças que já cresceram e não são mais crianças são ainda bem bagunceiras.
Mas a comida estava boa. Caprichei no almoço. Hoje era dia de frango. Fiz um frango diferente, pus linguiça. Linguiça no frango? É. Não tenho mais preconceitos culinários. Porque alguém resolveu que isso não se mistura com aquilo, então eu tenho que seguir essa regra boba? Não sigo. Misturo, misturo e misturo e pronto.
A vida é misturada. A lágrima desce do lado do sorriso. Venta e chove e faz sol.
O quarto do menino agora está arrumado, mas vazio. Arrumou ele a sua pequena mala e foi-se embora, saudoso da sua casa de estudante. Engraçado é que hoje não chorei, não me descabelei. Hoje olhei o menino indo e vi que ele não era mais um menino. Como custei pra ver isso. Ele não é senão um homem que desconheço, cujos ímpetos sou incapaz de prever. A ternura do seu sorriso, no entanto, me amolece e quase me leva a pensar que ele me conhece por dentro. Mas ele também não me conhece. Não sabe o que senti por ele quando ele nasceu. Como foi o nosso primeiro olhar, o primeiro abraço. Os filhos. Os momentos com cada um deles nos meus braços. Longas horas de afeto, alegria, ternura e sonho. Eles não se lembram. É uma pena que as crianças não se lembrem desses primeiros anos da infância. Talvez Deus tenha permitido essa amnésia a fim de protegê-las das catástrofes dos pais inexperientes. Eu também não me lembro direito da minha mãe. Lembro de um dia quando pensei que tinha crescido. Pensei isso e fui correndo olhar no espelho e falar pra minha mãe. Lembro dela e de mim, os dois reflexos no espelho do quarto. Ela era tão alegre, tão sorridente e feliz. Olhava pra mim como se eu fosse o bem maior do mundo. E dizia que eu era mesmo. "Querida, você é meu tesouro". Faz algum tempo que ela partiu. Deixou-me um vazio cheio de lembranças, afeto e histórias.
Hoje fico pensando que deixamos nossos tesouros pelo meio do mundo, eles vão crescendo, arrumando as malas e indo embora estudar longe ou trabalhar num lugar diferente do qual nasceram. Riscam seus próprios trajetos.
Estamos na vida de mala na mão, de coração descamisado, no meio do vento das circunstâncias. Logo, logo, vira o vento, viram as coisas, chega gente e vai gente. Gente que nasce, gente que morre. Gente que cresce e vai. Gente que envelhece e fica. Gente de passagem.
Hoje foi um dia muito esquisito. Choveu, fez frio, ventou, fez sol. Nem o tempo sabia direito o que queria fazer. Muito menos eu.
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Rosa, amore!
ResponderExcluirAcho um desperdício você ficar escrevendo no blog... Que acontece que você ainda não jogou todos os projetos pro alto e não escreveu um LIVRO, hein????
Meu bem, você é uma escritora!!! Das boas!!! Das melhores!!!
Você constroe histórias, emoções, sentimentos, muito melhor que casas, que "closi"!!!!
Amo vc!
Liginha
Titiiiiia!
ResponderExcluirAchei vc aqui fofa!
ki tamanho de texto!!
mas li tudinho...
Adorei a parte da vacina da Nair...
Mãe é mãe e mae é tudo!
E eu me inspiro no jeito q vc escreve, as vezes sai um pouco parecidinho... as vezes não fica nem um pouco...
Amo vc... e já te add nos meus links...
bjoooosss
Rosa....
ResponderExcluirabsolutamente lindo!
Mãe realmente é uma dádiva divina...
E você é uam delas, ne!?
Feliz dia das mães, mesmo que atrasado. Afinal, todo dia é dia de mãe!
Beijos no cora
Saudades