terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Inconvenientes

Não sei se era a noite que estava estranha ou se era eu. O calor do dia esquentou a casa toda, não havia um lugarzinho fresco sequer. De tanto calor, eu não consegui me concentrar para trabalhar. Um vento começou a soprar de mansinho, e o calor foi abaixando. Tomei um banho de banheira, com a água fria. Pus um cd de Bach e ouvindo aquela música tão sublime, pensei em todo o afeto que deve ter vazado do coração daquele homem quando compôs aquela música. Algumas lágrimas me vieram, incontroláveis. Ele era só um homem, apesar de ser um gênio. Como será que conseguia viver num mundo tão abafado, rude e hostil? Talvez seu refúgio fosse a música. Li certa vez que o ser humano está sempre procurando alcançar a plenitude. Por isso criamos os refúgios. Refúgio do tédio, refúgio da dor, refúgio das coisas chatas e repetitivas que constituem a maior parte da vida. Penso nos meus pequenos refúgios, o desenho, a música, os livros. Como saio revigorada de uma nova leitura! Parece que me trocaram a pilha. Saio pra vida e aguento mais um pouco. Fico até alegre. Não sei como tem gente que não gosta de ler. Não gostar de ler deve ser uma deficiência, ou uma maldição. Se a pessoa soubesse e sentisse como é bom, nunca iria escolher não ler. Se escolheu, é porque lhe fugiu o privilégio, como um vento que passou e ela não soube segurar. Fico pensando no que fazem certos professores que não ensinam os alunos a usufruir do prazer de uma boa leitura. Tornam-se enfadonhos, repetitivos... e com a motonia costumeira daqueles que só pensam em preencher papéis, com a burocracia das regras e a evidente falta de vontade de estar alí, fazem das aulas de português um suplício e da leitura um castigo. Mudem esses tais de profissão! Sentem-se atrás de uma máquina ou de uma escrivaninha! Sejam carimbadores, carimbem initerruptamente pilhas de papéis! Leiam e releiam seus formulários! E por favor, não conversem com gente de carne e osso. Gente precisa de gente que gosta de gente. Gente precisa da emoção de ver a vida além da mediocridade, das regrinhas, da canseira triste e dolorida do cotidiano. Gente precisa sonhar pra viver, alçar vôos sobre o mundo que nos soterra.
Mas o vento é como a felicidade, coisa estranha, não se segura. Só dura um breve instante e pronto, acabou. Se ventar, a única coisa que podemos fazer é nos expor e usufruir. É preciso ter uma vontade imensa de se perder, de se esquecer, de ser outra coisa, de ser outro alguém. É preciso estar naquele estado de um cansaço insuportável da mesmice deste mundo e desejar ver outros mundos, escritos no papel.
Ah, também é preciso que a pessoa, mesmo grande, não perca aquela vontade de voar que se tem quando é criança. Vontade de voar, ainda que seja por dentro de si mesmo. Refrescada pelo banho e pela música, pensei um pouco no que fazer, porque me dava de novo aquela vontade de fazer algo, embora fosse quase a hora de dormir. Bom, gente grande não tem hora de dormir. Eu acho que só tive hora de dormir quando era criança. Mas os suplícios da adolescência me fizeram o favor de acabar com a doce hora de dormir. Vieram as insônias, os desafetos, as decepções, as lágrimas, misturada num redemoinho de alegrias, de novidades, de excitações, de crises de riso, de sonhos e delírios provocados - por que não dizer - pela incomparável beleza e vivacidade da juventude. Talvez o ventinho que começava a soprar também tenha me chamado pra fora de casa, com aquela voz estranha e poderosa que só os ventos tem. Pensei em deitar e ler meu novo livro velho, raridade que achei no sebo e pela qual estou maravilhada. Mas me deu vontade de ouvir voz de gente, então liguei para uma amiga que gosta de ler, perguntando se ela gostaria de acompanhar-me para tomar uma fresca, e quem sabe um sorvete, um café ou qualquer coisa. Ela já estava deitada, embora pela voz se percebesse que estava bem desperta... e lendo - como sempre - como quem ingere um costumeiro e eficaz remédio antes de dormir. Ler cura muitas coisas. Escrever também. Já começa que quem lê nunca está sozinho. Ler é também viver experiências de outros, olhar pelos olhos de outro, experimentar outros aromas e sabores que não são nossos. O leitor vira amigo (ou inimigo) do autor, da personagem, ou do lugar. E daí se desenrola uma relação que pode durar uma vida. Um casamento sem inconvenientes. Um verdadeiro encantamento. Mas a amiga disse sim, vamos sair, sim. Saímos na rua e o vento fresquinho parecia nos receber, alegre, como se também desejasse nossa companhia para espantar o tédio. Estávamos a conversar e a comer tranquilamente a comida gelada e japonesa, quando alguma coisa aconteceu na minha casa e minha filha caçula me ligou, afita. Será que era um ladrão? Que mundo doido. Não se pode fazer nada porque não se tem sossêgo, nem dentro, nem fora de casa. Talvez fosse só impressão da menina, mas como não tinha jeito de saber, voltei correndo pra casa, com o temaki atravessado meio torto na garganta, já irritada por ter que interromper a agradável conversa, e o agradável jantar, para novamente me enfurnar na casa abafada.
Mas a vida é feita de inconvenientes, com alguns poucos intervalos.
Apesar de todas as enormes janelas, o ar quente e pesado recusava-se a sair, como visita inoportuna que não percebe a hora de ir embora. Enquanto corríamos para casa, liguei para o serviço de vigilância que temos, pedindo que eles fossem lá. Em dez minutos chegamos e vimos que estava tudo bem. O rapaz da vigilância, magro e simpático, já havia entrado na casa e verificado tudo. A menina respirava ofegante, como quem se afoga no próprio ar, o que me fez sentir uma certa piedade, incomum para a minha natureza materna, que antevê, sempre desconfiada, uma armadilhazinha nova preparada para o pato-pai ou pato-mãe cair nela. Filhos. Com aquela cara de santos e olhar angelical - não se iludam os incautos - os filhos (todos) podem, tentam e conseguem, muitas vezes, manipular e puxar as cordinhas do mais astuto e experiente pai/mãe, marionete. Conseguem, a despeito de toda a nossa inteligência, experiência e conhecimento - que ainda que sejam precários, são maiores que os deles - transformar-nos no pato, bicho burro e sem nexo. Pior que o pato, só galinha. Mas passado o susto, sentamos para conversar novamente. A amiga não foi embora. Esperou pacientemente a confusão passar, a menina acalmar e eu me sentar. Ficamos na calma do sofá. Escancaro as janelas e o vento entra generoso e sedutor, desejando novamente estar conosco. Esta amiga mora a poucos passos de mim. Ela é uma pessoa delicada e sensível. É o tipo de pessoa que jamais diria uma grosseria ou se portaria de forma inconveniente ou rude em lugar nenhum. Jamais ofenderia alguém. A sua voz não foi feita pra isso. Voz tranquila e aveludada, mesmo nas situações mais indigestas. Me agrada muito a sua companhia e o som da sua voz. Há nela uma simplicidade natural, uma delicadeza tão grande, que ela não precisa de enfeites, nem de brincos, nem de anéis, nem de perfumes, nem de trajes, nem de sapatos, nem de nada dessas coisas tolas que nós mulheres usamos para nos enfeitar e das quais nos tornamos escravas.
Só aquela voz e aquele sorriso já seriam suficientes. Ah, ela também tem um olhar alegre e vivo, olhar de quem acredita nas coisas boas, e por isso vê coisas boas. Com eles vestida, ela não desconfia que reflete uma suave luz, deixando um rastro de beleza. A conversa flui, sem trancos e nem solavancos. Emendamos um assunto no outro e parecemos duas loucas conversando cinco coisas ao mesmo tempo e uma acompanha perfeitamente o raciocínio da outra. E no meio dos assuntos, lembramos dos filhos e nos alegramos por eles. E no meio das alegrias dos filhos, lembramos de títulos de livros que lemos e que precisamos ver se a outra leu também. Agitadas como crianças, nos alegramos com as coisas que ainda vamos ler. Às vezes, acontece de compartilharmos aborrecimentos. É a vida, com suas mazelas. Mas não nos demoramos nos assuntinhos, simplesmente viramos a página e procuramos outra coisa pra falar. Na sala fresquinha, tanto que se conversa que se perde a noção do tempo. A menina também senta e conversa. Sem o medo, aprende a amar os livros e a entender o valor da amizade entre as mulheres, seres iguais em sua natureza. O vento traz a chuva, que molha um pouco o sofá, e traz também alguns relâmpagos. A filha da amiga já é moça feita. Ela liga perguntando pela mãe. Por que os filhos acham que sem eles não podemos sair de casa? Engraçado, não é? De repente, viramos mães. Passamos a cuidar daquele maravilhoso pacotinho chorão, indefeso, faminto, lindo bebê. Ficamos anos nessa vida, cuidando e carregando, dioturnamente. Olhamos a vida pela janela. Ficamos privadas de passear, de sair, até de viajar, até de ler! Ler? A que horas? O cansaço não deixa. A prazerosa leitura antes de dormir, transforma-se no derradeiro suspiro, finalizando a louca rotina, estancada pelo barulho do livro que nos cai na testa. De repente, eles entram na adolescência. Digo de repente porque a gente nunca percebe bem quando essa fase chega. A gente se incomoda com o estranhamento da criança e pensamos "o que há de errado com você hoje, hein?" E a pergunta se repete todos os dias, semanas e meses vão passando, até que alguém comenta... "êta idadezinha miserável!" Aí, cai a ficha. De protetora idolatrada passamos a chata de plantão. Não raro eles nos dizem, "mãe, arrume uma coisa pra fazer..." Põem-nos de lado e ficamos esquecidas e solitárias. Ou seria desprotegidas malas-sem-alça? Os filhos, ameçando altura, esquecem dos pais. Ficamos assim, largados e sozinhos, no silêncio da casa vazia. E isso, às vezes, dói muito. Ainda bem que temos os livros. Quer seja pela filha que liga preocupada, pelo avançado da hora ou pelos relâmpagos, a amiga se levanta e diz que se vai, antes que o temporal desabe. Abraço-a de leve, pois está muito quente - e ela, com aquela leveza, não precisa de apertão - e agradeço como sempre a sua proximidade e companheirismo. Ela vai e o temporal desaba. Mas fica o frescor do vento, o cheiro dos livros velhos e novos que estão sobre a mesa, e a eletricidade dos relâmpagos no ar. Penso em como é bom estar a poucos passos da amiga. Sei que ela está lá na casa dela e eu na minha. Mas está perto. E isso me faz pensar de que podemos nos ver quando quisermos. O perfume indelével da chuva é como a cintilante afeição que nos une: tão suave... porém não se dissipa.

2 comentários:

  1. Aaah... Nada como o vento a nos brindar e brincar com nossa pele, sentimentos...

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  2. Prima vc nao nega o DNA, surpresa! escreve tambem !
    Adorei o texto e a postura do escritor, vc me fez vivenciar a cena.
    Parabens!
    Arlete

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