quinta-feira, 28 de abril de 2011

A vida é muito curta

Houve momentos que de tanto pensar, fiquei desorientada. Havia uma ânsia em mim de entender a vida que não me deixava em paz. - Mãe, por que que vão demolir essa casa tão bonita? E ela dizia: - Porque vão construir um prédio moderno. - Moderno? Mas mãe, o moderno vai ser mais bonito que essa casa? Mãe, olha lá, aquele homem com a marreta na mão, destruindo aquela estátua! Mãe, faz alguma coisa! Coitada da minha mãe. Tinha trabalhado o dia todo e só queria chegar em casa, tomar um banho quente, fazer uma sopinha e ir dormir, depois de banhar, vestir e alimentar todos nós. - Deixa pra lá minha filha, a vida é assim mesmo. Que horror. Não diga nunca isso para nenhuma criança, a vida é assim mesmo. Diga a verdade: - Meu filho (ou minha filha), infelizmente há pessoas que destroem as coisas, enquanto outras tem prazer em construir, plantar, fazer bonito, caprichar, cuidar. Tem gente que quer descer a marreta. A culpa é da ignorância das pessoas, e não da Vida. Mas a Vida, por sua vez, não facilitava em nada a minha vida. Tragava-me. A vida devorava-me viva, sem dó nem piedade, comendo as minhas horas no ir e vir da escola que, conforme eu crescia, ia ficando cada vez mais longe da minha casa. Eu fui me arregimentando como pude para encará-la. Manhãs cinzentas molhadas da garoa gelada de São Paulo. Manhãs agitadas nas novíssimas estações do metrô paulistano - pesadelo do "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley. O livro, escrito na década de trinta, pouco mais de vinte anos antes de eu nascer, me assombrou por meses. Finalmente, após a inauguração da "maravilhosa" estação Bresser, vi que era perfeitamente possível que os pesadelos se tornassem realidade. Os sonhos não, mas os pesadelos, ah, certamente esses acontecem! Livro admirável, horrenda realidade. Por um bom tempo, vivi triste. Tinha dó de tudo, de todos. Chorava pela miséria, pela sujeira, pela violência e pela feiura do mundo. Até que descobri que, por mais que eu buscasse, jamais saciaria a sede que havia em mim. Entendi que não era uma fase, que não era curiosidade, que não era teimosia, não era falta de coragem. Era esta ânsia uma considerável porção da minha alma. Criaram-me para pensar. Fizeram-me crer que o pensamento possui em si mesmo uma espécie de poder mágico de criação. Instruíram-me para apreciar o belo, a proporção, a delicadeza, as virtudes. Nutriram-me para almejar. Culpa total dos meus pais! (Bendita psicanálise). Me lembrei dessas coisas porque hoje conversei com um colega do mestrado que desenvolve uma pesquisa muitíssimo interessante sobre a arquitetura das estações do metrô, e embutido nisso está o fluxo e o caminhar das pessoas, seus ritmos, seus medos, suas defesas, suas necessidades. Forças que se chocam, a humana e a tectônica. Será que deveria ser assim? A arquitetura não deveria, principalmente e fundamentalmente, abrigar? A arquitetura imposta às massas humanas, essas sem direito à escolha desse - por que não dizer - produto, que a arquitetura também é. Arquitetura do não-lugar para joãos-ninguéns. Fui me formando naquele empurra-empurra. Ia e vinha no metrô, ou no ônibus, da casa para o trabalho, do trabalho para a faculdade, da faculdade pra casa. Aperta, amassa, sofre, espreme. Como milhões de iguais. Aqui na minha terra e no mundo. Lia em pé. Com o livro na mão, como um escudo, sobrava-me isolamento na exata medida em que me faltava espaço. Minha mãe dizia: - Não reclame. A dona Praxédis (senhora muito humilde que trabalhava em casa) vem lá de Itaquera de trem. Se os óculos dela penderem da cara, a pobre vem com eles assim mesmo, na impossibilidade total e absoluta de usar a mão para arrumá-lo. Sabe por quê? Porque ela vem pendurada no varal de gente que tem dentro do trem. Você, ao menos, é livre de óculos por causa dos seus vinte anos. Aproveite enquanto pode. Oh, Deus, que vida! Ainda tinha coisa pior, como a vida da dona Praxédis? O dia em que vi o trem que levava a dona Praxédis para casa dela, chorei a noite toda. Pesava-me a falta de significado daquele trem que trazia pessoas como gado. A tristeza de ver que as pessoas eram, em muitas horas do dia, e em muitos espaços da cidade, uma carga indesejável. Peso a ser empurrado sem necessidade de gentilezas. Fardos da cidade. Castigo social merecido. Maltrato puro. Senti a solidão urbana como um espinho na carne da "maravilha de se morar numa metrópole". Credo. Isso é maravilha? Me parecia um castigo. Eu sonhava com o campo, com a praia, com o fundo do mar, com outro planeta, com qualquer coisa, menos com a cidade grande. Mas logo vi que os livros eram mais do que histórias interessantes, eram alimento para uma alma seca e inquieta, que sofria de um faniquito crônico da falta de explicação de tudo. Falta de nexo, falta de senso, falta de humor, falta de sabor, falta de cor, falta de amor. Falta, falta, falta. Dor. Bom, meu pai dizia que a vida era dura pra quem era mole. Era uma vergonha eu não me acostumar com a rudeza da cidade. Vergonha familiar. Vergonha para uma linhagem de gerações e gerações de paulistanos trabalhadores e raçudos. Isso era tão grave como uma vergonha nacional. Naquela época, não tinha celular. Às vezes, pra fugir do trânsito, para fazer uma graça comigo mesma, para me livrar do tédio de fazer tudo sempre igual, eu inventava de mudar de caminho. Sem mais nem menos, sem a menor prudência ou noção do que estava fazendo, eu dizia pra mim mesma, que se dane, hoje vou por aqui. E via, sim, outros rostos, outras cores, outra paisagem. Me meti em muitas aflições por causa desses arrobos. Meu pai sempre muito silencioso, chegava em casa e me pegava confessando aqueles horrores para minha mãe, na mesa da cozinha. Me olhava com raiva, quase que fazendo uma careta e dizia: - Como é que você foi se perder nesse lugar? Tenha santa paciência, você ainda não sabe voltar de tal bairro? Calava-me, petrificada e estúpida. Calava-me porque sou da geração que não ofende nem o pai, nem a mãe. Porque família é sagrada. E toda vez que ouvia essa frase me lembrava de outra, que me parecia muito mais adequada: "Família só a Sagrada e assim mesmo na parede pregada!" Porém, se eu falasse a verdade naquela hora, meu pai me matava. Ensaiava um murmúrio mais ou menos assim, choroso: - Pai, sabe, eu queria ver uma paisagem com umas coisas novas...Ele, faltando pouco pra me esganar, me respondia: - O quê? Que coisa nova? Um assaltante novo? - Credo, pai. (Deixa-me ir e vir, pai, livra-me por favor, desse fardo de fazer tudo igual todos os dias). Pensava tudo isso e não abria a boca. Chegou um tempo que eu me cansei de tal maneira que, ou pedia demissão e mandava aquele belo emprego às favas - o que não podia ser, porque eu precisava me formar- ou me arrumava uma saída para aquele suplício do ir e vir no transporte público. Fácil. Contratei um motorista de táxi pra me levar cedo ao trabalho e me levar do trabalho para casa. Gastava uma fortuna de táxi, quase metade do meu salário. Que se dane, não suporto mais, pensava. A vida é muito curta para se viver, assim, tão mal. Quieta, no silêncio do táxi - de antemão combinava com o motorista que ele não me importunasse com conversas frívolas do cotidiano, do tempo, do clima, do trânsito, da política. Malditos políticos. Se prestassem pra alguma coisa, a cidade não ficaria nesse caos, as pessoas não viveriam amontoadas. Eu precisava do silêncio para pensar em um problema muito sério, um projeto importantíssimo que estava sob minha inteira responsabilidade. O motorista respeitava o trato. O que ele jamais soube é que o tal projeto importantíssimo era: "A Rosinha precisa sobreviver". Sair viva daquele inferno de vida na metrópole. Pagar caro para ter silêncio e espaço. Quanto a isso, nada mudou (não sejamos ingênuos). As pessoas se matam de trabalhar, para pagar por algum silêncio e um pouco de espaço. Brave New World. Mas o nosso mundo real é muito pior. Um dia, de repente, consolei-me com uma imagem mental muito interessante. Veio-me à mente que Minerva nasceu da cabeça de Júpiter completamente armada. Que beleza. Entendi que nasci da cabeça do meu pai. Já meu irmão do meio, por sua vez, nasceu do ventre masculino do meu pai, do seu apetite voraz, do seu vigor quase selvagem. Minha irmã caçula, doce e meiga, nasceu-lhe do coração. Era fruto dos seus consertos e perdões. Quando pensei isso, sosseguei. Minhas milhares de horas de análise tiveram finalmente uma serventia: descobri que o que eu via como fragilidade era, na verdade, força. Força da idéia, da vida, da ânsia de entender e viver uma vida única, minha. Força de sonhar um mundo melhor. Sonhar pra mim, sonhar para outros. Sonhar um mundo mais bonito, mais gentil, mais de verdade. Força da vontade de desenhar algo que prestasse, com as minhas mãos finas de moça. Mãos que não tinham lá muita força física mas que seguravam o lápis com uma satisfação indescritível, e uma destreza vibrante de possibilidades. E desenhava, desenhava. - Pra que que essa menina gasta tanto papel, desenhando? alguém, às vezes, perguntava. Minha mãe me socorria a tempo, dizendo: - Deixa ela, disso ainda vai sair alguma coisa séria. E saiu mesmo. Devo à minha mãe a escolha da minha profissão. Se hoje sou arquiteta, devo à ela. Escapo da maioria das angústias escrevendo e desenhando. Alinhando, colorindo, olhando, montando, desmontando, virando e desvirando, rabiscando, pintando. Olhando de novo. Namorando. Tecendo uma urdidura de vida e arquitetura. O pesadelo virou sonho, que virou realidade.

7 comentários:

  1. Uma bela descrição de porque você escolheu a arquitetura como profissão!!
    =]
    Adorei!
    Te amoo

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  2. Como sempre a "pena Rosamaria" desliza fácil... realmente é um mundo onde, por sua desordem, questionamentos afloram naturalmente... e que eles não cessem, mas transformem cada um de nós, com a graça de Deus, em arquitetos que deixem alguma construção de algo melhor... nunca desperdiçando nossa brevidade.
    Jesse Campos

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  3. Muito lindo, Rosa. Lendo me veio a lembrança muitas coisas da minha infância e bateu aquela saudade... É tão bom poder compartilhar as coisas que fazem ou fizeram diferença em nossa vida, hoje não sinto mais isso na juventude, o que é uma pena.
    Bjs

    Vanda Crivillari

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  4. Tudo que você escreve é incrível, você me faz lembrar aquelas escritoras inglesas que relatam o cotidiano de forma natural, moderna e espontânea, uma literatura que flui igual a água e que sacia. Jane Austen se fosse viva teria uma rival na América. Sou seu fã.

    De seu amigo Eder Olivato

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  5. Sou seu fã, tudo que você escreve flui naturalmente, sempre uma delícia de literatura. Se Jane Austen fosse viva morreria de ciúmes de ter uma rival como você na América, adoro tudo que você escreve.
    Eder Olivato

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  6. Tudo que você escreve é uma delicia de ler, flui igual a água. Me faz lembrar aquelas escritoras inglesas que retratam o cotidiano de forma natural. Você sempre acrescenta algo moderno no que escreve e isso faz a diferença. Se Jane Austen fosse viva morreira de ciumes de ter uma rival como você na América.
    Sou seu fã!
    Eder Olivato

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  7. É desse espírito preservacionista, amor histórico, sensibilidade artística e preocupação social que todos nós precisamos!!! Particularidades tão comuns de alguns outros povos, não é mesmo??? Certamente, políticas públicas com essa visão e com caráter educativo acima de tudo, seriam o diferencial para infiltrar essas características, tão louváveis, no ser humano brasileiro.

    Parabéns Pelo blog!!! Ele cumpre, com classe e estilo, sua função social.

    BJÃO

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